Rancho: a velha novidade do primeiro carnaval do século

Investindo mais na parte musical do que na badalação, o Rancho Carnavalesco Flor do Sereno promete um carnaval diferente na folia de rua do Rio de Janeiro

Nana Vaz de Castro
23/02/2001
O carnaval de rua do Rio de Janeiro tem atraído nos últimos anos mais cariocas do que o desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí. Os blocos, que se multiplicam a cada ano, vêm crescendo em popularidade, e há muito se tornaram parte da agenda oficial do carnaval da cidade. No primeiro ano do século XXI, entretanto, uma volta no tempo acaba se tornando a maior novidade da grande festa popular. Um típico rancho carnavalesco - espécie de ancestral das escolas de samba, muito popular entre fins do século XIX e a década de 50 - sai este ano em Copacabana, num singelo trajeto pela Avenida Atlântica. É o Rancho Carnavalesco Flor de Sereno, que por enquanto tem seu quartel-general no apertado bar Bip Bip, no mesmo bairro (Rua Almirante Gonçalves, 50).

Heresia suprema é chamar o rancho de bloco. Ou dizer que o cantor é um "puxador". A música típica do rancho é, claro, a marcha-rancho, de andamento bem mais lento que as tradicionais marchinhas de carnaval ou os sambas. Essa sutileza musical faz toda a diferença no clima do desfile, menos eufórico e mais contemplativo, quase inocente se comparado ao salve-se-quem-puder dos blocos que juntam mais de 10 mil pessoas nas ruas da cidade. Além do mais, no rancho há divisão de alas, com fantasias próprias.

Foto: Nana Vaz de Castro
Orquestra Típica Flor do Sereno
Marcha lenta, tradição antiga, pode parecer um carnaval para a terceira idade, mas o que acontece é justamente o contrário. Quase todos os principais responsáveis pela volta do rancho ainda não completaram 30 anos. "A história começou em 1996", lembra Pedro Aragão, diretor musical e executivo do rancho, que encampou a idéia e batalhou para concretizá-la. "Começamos a conversar sobre ranchos com o Elton Medeiros uma vez numa festa, e daí veio a idéia de colocarmos um rancho na rua. O tempo foi passando, a gente só falava e não fazia nada, e toda vez que ele nos encontrava nos chamava de frouxos, dizia que não tomávamos nenhuma iniciativa" conta, divertido.

Quase cinco anos e muitas negociações depois, graças principalmente aos esforços combinados de Aragão, Cristina Vignoli, a secretária-executiva do grupo, Alfredo Melo, dono do Bip Bip, e Marcelo Lamego, advogado e "consultor jurídico" da agremiação, finalmente o rancho vai para a rua, na segunda-feira de carnaval. Elton, filho de ranchistas, entrou na história apenas como referência para assuntos históricos, emprestando sua experiência para orientar e tirar dúvidas sobre o assunto. De quebra, cedeu uma composição inédita, a Marcha Regresso, dele, Cacaso e Maurício Tapajós, para o repertório do Flor de Sereno, nome escolhido por votação direta em uma das reuniões preliminares, que começaram em abril passado. "A data da fundação do rancho é 23 de abril, dia do aniversário do Pixinguinha", faz questão de lembrar Aragão.

Nas reuniões - sempre no Bip Bip e devidamente documentadas em atas - ficaram determinadas também as cores da agremiação, verde, azul e prata, e foram escolhidas as outras músicas feitas especialmente para o rancho. Tradicionalmente são três músicas: uma marcha-rancho inicial, para abrir o desfile, um samba-amaxixado, de teor provocativo e satírico, e uma marcha-regresso, para o percurso de volta. A marcha-rancho foi composta por Samuca (na verdade Samuel Araújo, professor da Escola de Música da UFRJ) e, intitulada apenas Flor do Sereno, foi aclamada e aprovada por unanimidade logo na primeira audição. O samba-amaxixado foi o último a aparecer, mas é o mais popular nos ensaios. Parceria de Jayme Vignoli e Aldir Blanc, O Regresso da Flor tem todos os requisitos necessários, desde a levada sincopada do maxixe até versos que citam o juiz Nicolau e o banqueiro Cacciola.

Excelência musical
A parte musical é de fato o que mais chama a atenção. Pedro Aragão e Samuca arregimentaram um time de músicos experientes, bem dispostos, e acima de tudo capazes de executar os arranjos escritos por Vignoli e pelo professor e compositor Antônio Guerreiro, além de arranjos originais de Pixinguinha resgatados por Aragão na Biblioteca Nacional ou por meio de amigos músicos. Assim formou-se a Orquestra Típica Flor do Sereno, que atualmente conta com 16 integrantes, entre trompetes, trombones, clarineta, flautas, flautim, saxofones, cavaquinho, violão e percussão. Todos eles desfilarão em cima do carro de som. O próprio compositor do samba-amaxixado se espanta: "São músicos fantásticos que estão tocando num esquema samaritano, filantrópico, que vestiram a camisa do rancho", diz Vignoli, cavaquinista da orquestra. O clarinetista Rui Alvim faz coro: "O carnaval do Rio, de décadas pra cá, é muito pobre musicalmente. Acho que o rancho resgata uma importância da música para o carnaval que não havia mais."

Foto: Humberto Araújo
Ensaio do Rancho no Bip Bip
No ano passado, o Flor do Sereno promoveu duas feijoadas para arrecadar dinheiro e divulgar o projeto. O lucro foi pequeno, mas neste ano o rancho se registrou oficialmente como entidade cívica sem fins lucrativos e obteve uma parte dos recursos que governo do estado do Rio destina ao carnaval de rua. "Com esse dinheiro vamos poder pagar o carro de som e os músicos", comemora Aragão, que cursa Regência na UFRJ e faz as vezes de maestro da orquestra.

Para os próximos anos a expectativa é de crescimento. "O rancho este ano está andando de bicicleta de rodinha, estaremos tirando a rodinha a partir do ano que vem", ilustra Vignoli. "Vamos tentar manter a orquestra e realizar bailes periódicos, não só para arrecadar dinheiro e pagar os músicos, mas também para promover o rancho. Aí poderemos vender camisetas, plásticos de carro, chaveiros...", diz o compositor. Para Aragão, entretanto, a prioridade depois do carnaval é conseguir uma sede para a agremiação, que possa abrigar ensaios, bailes e também servir de escritório para guardar partituras, fotos etc. "Seria ótimo se arranjássemos um patrocínio", planeja.

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