Raul de Barros luta contra o ostracismo

Completando 85 anos, o trombonista autor do lendário choro Na Glória vive em Maricá, praticamente esquecido, e passa o tempo escrevendo arranjos – mas não abre mão do título de Rei da Gafieira

Nana Vaz de Castro
25/11/2000
Atenção documentaristas, cineastas, escritores! Há um personagem que vivenciou muitas das histórias mais importantes da música popular brasileira nos últimos 65 anos esperando uma oportunidade para contá-las. Aos 85 anos (completados hoje), Raul de Barros é uma lenda viva do trombone brasileiro, e faz questão de frisar: "Cada dia da minha vida é uma história diferente".

E é mesmo. Já tocou com Ary Barroso, Pixinguinha, Radamés Gnattali e fez parte das orquestras de maior prestígio do país, como a da Rádio Nacional, a do Copacabana Palace, as das TVs Globo, Rio e Tupi, entre tantas outras. Também liderou durante muitos anos a Orquestra Raul de Barros e outro conjunto de nome insólito: Raul de Barros and the Brazilian Serenaders. "Na época eram moda esses nomes em inglês", conta, referindo-se aos anos 40 e 50. Acompanhou mais cantores do que pode lembrar, inventou um estilo próprio de tocar o instrumento, foi coroado Rei da Gafieira e compôs o choro Na Glória, que lhe rende direitos autorais até hoje e cujo refrão é, entre os músicos, a melhor forma de "pegar o tom" de qualquer música.

Hoje em dia a situação é outra. Depois de passar um ano de cama por conta de uma úlcera varicosa no calcanhar - da qual já se recuperou -, Raul de Barros passa os dias em sua pequena casa de Maricá (pequeno município da região dos lagos do estado do Rio), onde vive há dez anos, afastado involuntariamente da vida artística e com dificuldades financeiras. Dos seus mais de 40 discos, apenas dois são encontráveis nas lojas: O Som da Gafieira e Ginga de Gafieira.

Arranjos como passatempo
Para passar o tempo, faz aquilo que sabe: música. Mais precisamente, arranjos. Raul escreve grades completas para orquestras de cinco saxofones, três trompetes, três trombones, piano, guitarra, baixo e bateria. O repertório é repleto de standards, brasileiros e americanos: É Com Esse Que Eu Vou (Pedro Caetano), Meiga Presença (Paulo Valdez), o fox Laura (Johnny Mercer/ David Raksin), Aquarela do Brasil (Ary Barroso) e outros. A frustração é não ter oportunidade de ouvir aquilo que escreve - o que sempre foi motivo de aflição para orquestradores e arranjadores até o advento dos softwares específicos.

Os arranjos para big band são uma forma de lembrar dos tempos do Golden Room do tradicional Copacabana Palace, onde integrou uma orquestra pioneira formada apenas por negros, dirigida pelo maestro Carioca, que era admirador confesso da sua maneira de tocar. Admiradores, sempre houve muitos. "Ao longo da minha vida sempre fui muito imitado, na maneira de tocar, de vestir, até mesmo no meu nome", diverte-se, falando do consagrado trombonista Raul de Souza, cujo nome verdadeiro é João José Pereira de Souza e que começou usando o nome artístico "Raulzinho" - não por acaso. Por muito tempo, o nome "Raul" era sinônimo de trombone.

O filho, Raul de Barros Jr., é o maior entusiasta da volta do pai aos palcos. Ajuda a lembrar os fatos e as histórias vividas pelo trombonista quando a memória falha, mostra os discos, tenta colocar o pai de volta no meio musical. Uma rara chance acontecerá amanhã (domingo) no bar Espírito do Chopp, na Cobal do Humaitá (RJ), quando haverá um show de aniversário, com convidados. Raul Jr. também trabalha com música, constrói instrumentos de percussão originais - muitos deles eletrificados - que vende em lojas ou pessoalmente, e grava algumas composições com auxílio de computador e aparelhos de som. O pai coruja aprova: "O que ele faz não existe no resto do mundo".

Segundo o filho, Raul de Barros tem uma legião de fãs e admiradores que nem sabem que ele está vivo. "Já mandei todo o material para o programa do Jô Soares, liguei mais de dez vezes, mas nao me deram nenhum retorno", explica. Enquanto isso, Raul Jr. busca auxílio financeiro para conseguir levar o pai de volta aos palcos. "Um show por semana, ou a cada duas semanas, em uma casa noturna, com uma banda, seria suficiente. Homenagens depois não adiantam", lamenta, enquanto o enxuto senhor de 85 anos mostra todo o suíngue pilotando o trombone King B-3 que ganhou da Rede Globo quando seu instrumento foi destruído em um acidente de automóvel, nos anos 60. Mais uma história daquele que nunca perdeu a majestade. "Como posso não ser rei, se eu sou a raiz?", pergunta, sem esperar resposta.