Recife muito além do mangue beat

Cada um na sua área, Mundo Livre S/A, Devotos e Via Sat fortalecem a cena musical da cidade, injetando novidade e qualidade em seus discos

Silvio Essinger
11/08/2000
Lá se vão seis anos desde que o mangue beat deu as caras nacionalmente, com o lançamento dos discos de estréia de Chico Science & Nação Zumbi (Da Lama ao Caos) e Mundo Livre S/A (Samba Esquema Noise). Mesmo a morte de Chico em 1997 e falta de um estouro comercial não impediram que a cena musical de Recife continuasse a frutificar e a expandir seus horizontes estéticos. Acabam de chegar ao mercado Por Pouco (quarto disco do Mundo Livre), Devotos (segundo disco da banda punk de mesmo nome, outrora conhecida como Devotos do Ódio) e Via Sat, disco homônimo de estréia da banda do vocalista Pácua, ex-integrante do bloco Lamento Negro (que chegou a acompanhar Chico Science no começo da carreira). "A cena de Pernambuco ainda não foi sacada no Brasil", alerta Pácua. "Aqui tem uma pá de movimentos: rap, hardcore, mangue, forró, frevo, maracatu, coco, samba de roda... Não dá para dizer que é tudo uma onda só."

Um dos autores do manifesto do mangue beat, Caranguejos com Cérebro (endossado por Chico Science), Fred Zero Quatro fez do seu Mundo Livre S/A uma máquina de experimentação musical. Em Por Pouco, no entanto, a banda optou por um contraponto ao hermetismo do CD anterior, Carnaval na Obra (1998). "Ele era mais lado B do que lado A, sem compromisso com o mercado. Esse agora é bem mais objetivo", diz Fred. A faixa de trabalho do disco, Melô das Musas é uma fusão de Musa da Ilha Grande e Uma Mulher com W Maiúsculo, músicas do primeiro disco da banda, que até hoje não teve relançamento. "Elas foram muito subestimadas", acredita Fred, apostando na força de canções testadas e aprovadas em shows.

O único "momento de relaxamento"no espírito pragmático de Por Pouco é Lourinha Americana, uma faixa de Mestre Laurentino, recolhida pelo antropólogo Hermano Vianna no mapeamento musical do país que resultou na série de TV Música do Brasil. Hermano também é responsável indireto por o Mistério do Samba. A música foi escrita a partir das teses do antropólogo em seu livro de mesmo nome, que, segundo o músico, "ajudam a desmontar alguns estereótipos ingênuos" sobre o samba. "Hoje vejo o samba como uma fonte que não corre só em uma direção. E da qual não se sabe qual vai ser o destino. É um bebedouro inesgotável", diz.

O que há de comum entre Por Pouco e os outros discos do Mundo Livre é o teor engajado das letras, que não foi amaciado pelo fato de a banda ser contratada de um grande grupo de comunicação, a Abril Music. Os males do "muro americano" (o imperialismo disfarçado de globalização) são hoje a grande preocupação de Zero Quatro. "Se em 1994, quando a gente lançou o primeiro disco, a situação já era preocupante, imagina agora. Tudo o que a gente desconfiava que ia acontecer", diz. Para ele, o espírito do mangue beat permanece em Por Pouco. "Tenho como uma espécie de missão valorizar a cultura da diversidade. E a cena de Recife é a da utopia da diversidade."

Numa de suas célebres provocações, o Mundo Livre resolveu nesse disco "terceirizar o Departamento de Imagem". As fotos de divulgação são feitas com modelos e não com os músicos. "Eles farão os playbacks, os clipes (estão no de Melô das Musas) e as entrevistas para revistas mais voltadas para a imagem", conta. Os shows, porém, continuam a ser feitos pela própria banda, que, pouco antes do lançamento do disco, se apresentou em Portugal, na Espanha e na Bélgica.

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