Reunião eclética em tributo a Clara Nunes

Um Ser de Luz, CD duplo em homenagem à cantora, traz veteranos e novatos regravando sucessos

Marco Antonio Barbosa
06/11/2003
Uma série de homenagens foram planejadas e/ou anunciadas para celebrar os 20 anos da morte de Clara Nunes. Acabou que dentre os prometidos lançamentos fonográficos, apenas um de real monta chegou às lojas: Um Ser de Luz - Saudação a Clara Nunes, o tão aguardado tributo à cantora. O lançamento que a gravadora DeckDisc acaba de pôr nas lojas traz nada menos que 28 faixas (o CD é duplo) relembrando algumas das canções que ajudaram Clara a se tornar a mítica intérprete que conhecemos. No projeto concebido por João Augusto - presidente do selo - , foram reunidos grandes nomes da MPB, gente que conheceu e trabalhou com Clara e uma série de outros convidados de gerações posteriores, que nem sonhavam em fazer música quando a cantora morreu, em 1983.

"Muita gente quis homenageá-la (Clara) neste ano. Fazia-se alusão à sua vida, com quem ela namorou, como começou sua carreira, essas coisas pessoais. Sua obra, porém, que é o que mais importa, tocava cada vez menos por aí", ressalta o compositor Paulo César Pinheiro, viúvo de Clara e zeloso organizador de seu legado artístico. "Essa coletânea sim é que eu considero uma grande homenagem, lembrando seu repertório excelente", considera Paulo, lembrando que o prometido relançamento integral da discografia de Clara ainda não se concretizou. "A EMI (detentora do catálogo da Odeon, por onde a cantora lançou virtualmente toda sua obra) resolveu prensar os discos de novo, o que é uma ótima iniciativa, os discos são muito procurados até hoje."

Um Ser de Luz não deixa de fora praticamente nenhum dos clássicos de Clara. Isso não é de se estranhar. O que pode causar espanto é a relação de artistas escolhidos. Entre veteranos como Elza Soares, Walter Alfaiate e Fafá de Belém, estão talentos revelados há relativamente pouco tempo, como Renato Braz (este em duas canções), Rita Ribeiro, Monica Salmaso e Mariana Bernardes. Se alguns nomes novos não surpreendem tanto, por serem naturalmente ligados ao samba (Seu Jorge, Mart'nalia, Teresa Cristina), outros - caso do grupo de forró Falamansa ou de Marcio Art, vocalista do grupo de pagode pop Art Popular - podem causar estranhamento aos puristas. "São pessoas jovens que provavelmente nem viram Clara cantar ao vivo. Mas se debruçam com paixão naquilo que ela deixou", fala Paulo César.

De qualquer modo, a produção acima de qualquer suspeita de Paulão 7 Cordas se encarrega de aparar as possíveis arestas. Se a seleção de intérpretes foi heterodoxa, nos arranjos o fundamentalismo do samba tradicional se fez presente. Com um grupo base que incluiu os sempre confiáveis Esguleba (variados instrumentos de percussão) e Carlinhos 7 Cordas (violão), mais convidados especiais como Henrique Cazes e Roberto Marques, a sonoridade segura e não deixa cair. O que ajuda a equilibrar o resultado obrigatoriamente desigual de uma coletânea deste tipo.

Irretocáveis, por exemplo, estão Seu Jorge (em Na Linha do Mar, de Paulinho da Viola), Mart'nalia (Ijexá, de Edil Macedo) e mesmo o "peixe fora d'água" Renato Braz (especialmente em Menino Deus, de Mauro Duarte e Paulo César); eles emprestam sabor moderno às canções sem perder a reverência. Menos felizes entre os "novatos" foram Zeca Baleiro, que soa deslocado em Tristeza Pé No Chão (Armando Fernandes), Marcio Art, um tanto canastrão em Conto de Areia (Romildo/Toninho) e Helen Calaça (com Basta um Dia, bela composição de Chico Buarque). Pelo menos o Falamansa ganhou uma faixa mais adequada a seu estilo - o forró Feira de Mangaio, de Sivuca & Glorinha Gadelha, um dos maiores sucessos de Clara.

Entre os veteranos, pouco a reparar. A tradição domina e irradia nas participações de Elton Medeiros (Lama, de Mauro Duarte), Monarco (Peixe com Côco, de Alberto Lonato, Josias e Maceió do Cavaco), Ivone Lara (Juizo Final, de Cavaquinho e De Brito) e Walter Alfaiate (É Baiana). Elza Soares empresta seu suingue impagável a Canto das Três Raças, o mesmo ângulo atacado por Wilson Moreira em O Mar Serenou. Vale também registrar as belas interpretações que a novíssima geração do samba carioca de raiz, perfeitamente integrada no estilo e na estética à velha guarda, confere ao disco. Teresa Cristina (Você Passa Eu Acho Graça, de Ataulfo Alves e Carlos Imperial), Nilze Carvalho (A Deusa dos Orixás, de Toninho Nascimento e Ronildo) e Pedro Paulo Malta (Minha Festa, de Cavaqunho/De Brito) enquadram-se nessa boa seara.

Pesando tudo, Um Ser de Luz configura-se como uma bela e sincera homenagem a Clara Nunes, pelo menos enquanto a prometida reedição completa não chega. "Lançaram a discografia dela em CD, 16 álbuns, há uns sete anos atrás. Mas a tiragem foi pequena, tudo se esgotou rapidamente e nunca mais saiu nada", recorda-se Paulo César Pinheiro. E também o disco duplo da Deck pode ocupar o digno lugar de "tributo oficial" a Clara, apagando a lembrança do estranho Clara Nunes Com Vida (1995) - que trazia gente como Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, João Bosco, João Nogueira e Martinho da Vila em duvidosos "duetos póstumos" com a cantora.