Riachão: a volta do cronista do samba baiano

Compositor lança o segundo disco solo, produzido por Paquito e J. Velloso, com participações de Caetano, Tom Zé, Carlinhos Brown e Dona Ivone Lara

Tom Cardoso
06/12/2000
Sambista de fino trato, cronista de mão cheia e capoeirista nas horas vagas, o baiano Riachão está prestes a receber uma homenagem à altura de seu talento, mesmo que um pouco tardia para quem tem quase 60 anos de carreira. Amanhã, no Museu de Arte Moderna, em Salvador, será lançado o CD Humanenochum, produzido por Paquito e J. Velloso, a mesma dupla responsável por resgatar, há três anos, a obra de outro genial sambista, o também baiano Batatinha, no álbum Diplomacia.

"Agora chegou a vez da minha estrela brilhar", diz Riachão, sem conseguir disfarçar a empolgação em poder gravar o seu segundo disco solo - o de estréia foi lançado em 1991, financiado pelo Desembanco, empresa no qual trabalhou como contínuo até se aposentar o ano passado. Desta vez, a produção será bem mais caprichada. Cantam ao lado do compositor, admiradores como Caetano Veloso (em Vá Morar com o Diabo), Tom Zé (Cada Macaco no Seu Galho), Dona Ivone Lara (Até Amanhã), Roque Ferreira (Quem É o Dono Dessa Mulher?) e Armandinho (Choro Número 1). Carlinhos Brown, que também dá a sua canja (em Pitadas de Tabaco), cedeu o seu sofisticado estúdio (Ilha dos Sapos) para as gravações do disco, que começa a ser distribuído pela gravadora Velas por todo o Brasil no ano que vem.

"Gravar com toda essa gente foi motivo de grande satisfação para mim. Cantar junto com Dona Ivone, uma grande mulher, nem se fala", elogia Riachão, que conta ter tirado o título do álbum, Humanenochum, de um nome de uma organização criada por ele para homenagear as mulheres, história que explica em uma das faixas do disco. "Eu tenho mania de valorizar as mulheres, tanto que sou pai de 10 filhos", brinca o sambista. O produtor Paquito diz que procurou fazer um resumo da obra de Riachão, seguindo os mesmos critérios usados para lançar o disco em homenagem a Batatinha - outro ícone do samba baiano - em 1997. "São dois grandes compositores, que gozam de muita popularidade na Bahia, mas que estavam um pouco deixados de lado".

Compositor voraz
Paquito e J. Velloso tiveram uma certa dificuldade para selecionar as 19 canções do disco. Riachão criou fama de ser um compositor voraz e hoje gaba-se de ter no baú mais de 400 escritas. "Quando chegava na Rádio Sociedade, em Salvador, o Antonio Maria (o célebre jornalista, radialista e compositor pernambucano) anunciava: ‘Lá vem o homem que nunca cantou as músicas dos outros’", lembra, orgulhoso. Além da facilidade de criação, Riachão era bom de improviso. Marcou época transformando fatos e acontecimentos da cidade em crônicas musicais. O que era notícia em Salvador não escapava de suas ironias.

O compositor lembra que, na década de 60, os norte-americanos trouxeram a baleia Moby Dick (coisas de americano) embalsamada para ser exposta em plena Praça da Sé. "Estava caminhando pela Rua Chile quando vi uma multidão se encaminhando para a Praça. Quando cheguei lá vi um monte de gente olhando aquela baleia e perguntei para mim mesmo: ‘Ué, esses gringos são loucos, o mar tá lá embaixo, perto do comércio’. Resolvi compor uma música na mesma hora, Baleia da Sé (também incluída no novo disco), um dos meus grandes sucessos de rádio", recorda.

Outras fatos não escaparam do improviso de Riachão, como o Incêndio do Mercado Modelo (ponto de encontro de sambistas nos 40 e 50, onde o compositor garante que lutou muita capoeira - "mas hoje já não tenho a mesma agilidade"), Rainha Elizabeth (sobre a visita da rainha britânica ao Brasil) e Tartaruga 70, canção que relata a chegada de uma enorme tartaruga, vinda da América do Norte, às praias de Salvador. Porém, quando tinha de falar sério, Riachão também caprichava na poesia, como em Barriga Cheia, censurada pela ditadura militar nos anos 70: "Eu, de fome vou morrer primeiro/Você, de barriga cheia, também vai morrer um dia."

Morando no bairro do Gracia, o mesmo onde nasceu em 1921 e viu surgir as grandes agremiações carnavalescas, como a afamada Mudança do Garcia, hoje Riachão acompanha distante os novos fenômenos musicais de sua terra. Sobre o axé music e o samba reggae, tem pouco a dizer. "Continuo gostando é de samba e atualmente admiro os sambistas do Rio de Janeiro, como Zeca Pagodinho e Beth Carvalho. Não ouço a atual música baiana. Cada macaco no seu galho", diz, citando sua canção mais famosa, regravada mais tarde no álbum Tropicália 2, (1993), de Gil e Caetano.