Rosa de Ouro, que tesouro

O show que apresentou Clementina ao mundo inovou em produção, repertório e elenco

Nana Vaz de Castro
06/02/2001
O espetáculo Rosa de Ouro ouvir 30s, produzido por Hermínio Bello de Carvalho em 1965, foi um movimento de intensa vibração no cenário da música brasileira, então dominado pelos fenômenos do iê-iê-iê. Junto com o show Opinião, que estreou em 64 tendo como protagonistas Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale, formava um foco de resistência cultural nos primeiros anos do regime militar brasileiro. Trazendo de volta à cena a antiga diva Araci Côrtes e apresentando Clementina, acompanhadas pelo conjunto formado por Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Anescar, Jair do Cavaquinho e Nelson Sargento (os Cinco Crioulos), o Rosa de Ouro foi um sucesso, permanecendo em cartaz no Teatro Jovem (RJ) por meses, numa temporada maior que o esperado. Logo depois, foram para São Paulo, apresentando-se no Teatro Oficina.

Paulinho da Viola, que começou na carreira artística mais ou menos na mesma época e teve em Rosa de Ouro também sua grande estréia, lembra: "Eu tinha a mesma perplexidade que ela, porque estávamos ambos começando. Ela tinha uma relação de mãe e filho conosco, e eu era o mais novo, tinha 21, 22 anos, era visto como um menino". Elton Medeiros corrobora: "Foi uma das pessoas mais generosas que eu conheci. Ela e marido, o Pé Grande. Eram muito carinhosos, o que não é tão comum no meio artístico. O carinho e os conselhos que ela dava ressoam dentro de mim até hoje". Não por acaso, Elton, Paulinho, Hermínio e muitos outros que conviveram com Clementina só a chamavam de "mãe".

A entrada de Clementina no Rosa de Ouro era realmente triunfal. Ela aparecia apenas na segunda parte do espetáculo, depois dos números de Araci Côrtes. Os Cinco Crioulos faziam um pot-pourri de sambas que terminava no partido-alto de Elton, Clementina, Cadê Você?. Depois disso, as luzes se apagavam e ouviam-se apenas tambores soando, até que, no meio de um jogo de luzes bastante inovador para a época, aparecia a ebanácea Clementina, em seu vestido branco, cantado Benguelê.

"O Rosa de Ouro foi muito comentado, e depois disso a Clementina passou a estar sempre cercada por muita gente. Virou uma estrela de repente", recorda Paulinho. De fato, em 1966 Clementina gravou seu primeiro disco individual (Clementina de Jesus ouvir 30s), viajou para o Senegal, representando o Brasil no Festival de Artes Negras em Dacar, e para a França, onde foi representar a MPB no Festival de Cinema de Cannes.

A internacional Quelé
Uma vez que a aventura da vida artística parecia estar dando certo, Clementina decidiu abandonar definitivamente o emprego de doméstica (trabalhou na mesma casa, de um casal de portugueses, por 20 anos) pela de cantora. Não sem protestos e ameaças dos antigos patrões, que avisaram que não iriam aceitá-la de volta depois. E ela foi para o mundo.

Em Dacar, os principais representantes da música brasileira eram Clementina de Jesus, Ataulfo Alves e Elizeth Cardoso, simbolizando, respectivamente, a música brasileira primitiva, clássica e moderna. Paulinho e Elton foram como acompanhantes, e guardam belas recordações das platéias africanas. "Foi a maior ovação a Clementina que eu vi em todo o tempo que a acompanhei. Ela teve de voltar ao palco cinco vezes para o bis. Isso nunca aconteceu no Brasil", diz Elton, recordando o primeiro show, em que ela cantou acompanhada apenas por percussões e palmas (de seu marido Pé Grande).

No Festival de Cannes, na França, no mesmo ano de 1966, Clementina (sempre acompanhada por Pé Grande, Elton e Paulinho) tocou ao lado de Elizeth, Zimbro Trio, Irmãs Marinho e Wilson Simonal. Passou alguns dias em Paris, onde reencontrou o antigo parceiro de palco Turíbio Santos, que aperfeiçoava seus estudos de violão. "Ela passou uns cinco dias em Paris, e como eu morava lá, fiquei como cicerone. Um dia, tive que ir dar uma aula, e deixei Clementina, Pé Grande, Elton Medeiros e Paulinho da Viola num bar, na esquina da Rue des Écoles com Boulevard St. Michel. Quando voltei, Clementina estava na rua, em frente ao bar, cantando e dançando, e os outros batucando em volta dela. E a francesada, claro, olhando espantadíssima", lembra o violonista.

Tendo iniciado a carreira em uma idade em que a grande maioria dos artistas e trabalhadores em geral só querem saber de aposentadoria, Clementina exibiu vitalidade impressionante em seus primeiros anos de cantora profissional. Em 1967 encarou a segunda temporada e o segundo disco do Rosa de Ouro ouvir 30s. No ano seguinte, não saiu do estúdio: gravou Gente da Antiga ouvir 30s, com Pixinguinha e João da Bahiana, fez o espetáculo Mudando de Conversa ouvir 30s, que também virou disco, e ainda Fala, Mangueira! ouvir 30s, cantando sua escola de coração ao lado dos amigos Carlos Cachaça, Cartola, Nelson Cavaquinho e Odete Amaral.



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