Sabá conta como o Jongo Trio virou Som Três

Fundador de duas das mais importantes bandas da bossa nova, o baixista paraense, de 74 anos de idade, relembra histórias do braço paulistano do movimento

Carlos Calado
20/02/2001
Se fosse originário de outras regiões do país, ele certamente seria chamado de Tião. Porém, como nasceu e cresceu em Belém do Pará, Sebastião Oliveira da Paz herdou o costumeiro apelido de Sabá. Um nome que está ligado à história de dois dos grupos mais originais e cultuados na música instrumental brasileira da década de 60: o Jongo Trio e o Som Três. Aos 74 anos de idade, próximo de completar seis décadas de carreira profissional, o contrabaixista e vocalista diz que ainda se surpreende com a repercussão do trio que formou em 1965 com o pianista Cido Bianchi e o baterista Toninho Pinheiro. Um conjunto tão especial que até foi homenageado pelo compositor Eduardo Gudin com a canção Jongo Trio (gravada por Vânia Bastos, no CD Canta Mais, lançado em 1994 pela Velas).

"O interesse pelo Jongo ainda nos espanta. O que é que esse trio tem para manter esse interesse do público por 35 anos? Quando nós três cantamos e tocamos acontece alguma coisa especial, um fenômeno que nem nós mesmos sabemos explicar", comenta Sabá, referindo-se ao sucesso das duas apresentações comemorativas que o trio fez no ano passado, em São Paulo. O que não deixa de ser irônico, para um conjunto musical que durou menos de um ano, em sua formação original.

Sabá vivia em São Paulo havia 13 anos, quando Toninho Pinheiro o procurou na Baiúca, casa noturna onde tocava diariamente, no início de 1965. O baterista convidou-o a formar um trio instrumental e vocal, na linha do carioca Tamba Trio (que era liderado pelo pianista Luiz Eça). Os três começaram a ensaiar, nas horas vagas, com o pianista Cido Bianchi. Em pouco mais de dois meses, o repertório do grupo, calcado na bossa nova, estava praticamente pronto. Autores conhecidos, como Dorival Caymmi, Johnny Alf e Vinicius de Moraes, apareciam ao lado de novatos, como Hermeto Pascoal, Théo de Barros e Marcos Valle. Nesse meio-tempo, os três adotaram o nome Jongo Trio, sugerido pela pianista Vera Brasil.

Foto: Carlos Calado
Sabá, hoje, em estúdio
Prontos para tocar em público, pediram uma chance para estrear no badalado Teatro de Arena, pólo difusor da bossa nova em São Paulo, mas o produtor Moracy do Val não se mostrou nada animado. Depois de muita insistência, conseguiram permissão para exibir um único número, antes que as estrelas daquela noite entrassem no palco. O trio escolheu o samba Menino das Laranjas, de Théo de Barros. A reação da platéia foi tão calorosa que Moracy só deixou os três saírem do palco depois de apresentarem oito números. Dias depois, já estavam acompanhando o violonista Baden Powell, no Cave.

Além do evidente brilho instrumental do grupo, o que chamava atenção especial no Jongo Trio eram seus arrojados vocais. Apesar da experiência que acumulara ao integrar grupos vocais como Os Modernistas, hoje Sabá credita a maior parte desse mérito a Cido Bianchi, o único dos três que tinha estudado canto a sério, quando ainda vivia em Ribeirão Preto, no interior paulista. "Ele tinha uma voz privilegiada e era muito afinado. Cido foi o arranjador de 80% dos nossos vocais", reconhece o contrabaixista.

Esnobando Chico Buarque
Logo veio o convite para gravarem um LP pela gravadora Farroupilha (Jongo Trio ouvir 30s, que ainda pode ser encontrado nas lojas, em CD editado pelo selo Mix House). Um dia foram apresentados a um jovem estudante do Mackenzie, que trazia a recomendação de ser bom compositor. "Olhamos o garoto de cima para baixo e pedimos a ele que tocasse algumas músicas. Ficamos incomodados, porque ele tocava mal e cantava pior ainda. Acabamos dispensando o sujeito. Era Chico Buarque", conta Sabá, rindo ao lembrar que, no início dos anos 50, quando fazia parte dos Modernistas, também tinha despachado Adoniran Barbosa, porque os sambas tradicionais do compositor paulista não tinham nada a ver com a proposta daquele grupo.

Outro marco na história do Jongo Trio foi a temporada com Elis Regina e Jair Rodrigues, no teatro Paramount, em abril de 1965. "Para surpresa nossa, foi uma loucura total. A gente não entendia por que o povo delirava tanto com aqueles espetáculos", conta Sabá, revelando que, apesar de o teatro estar lotado durante toda a temporada, o trio não recebeu nem um centavo pelos shows. "O cheque que recebemos do produtor Walter Silva não tinha fundos. Levamos um cano", afirma.

No caso do disco com a gravação ao vivo desse show, Dois na Bossa (lançado originalmente pela Philips), não foi diferente. Além de não ganhar dinheiro algum por essa gravação, segundo Sabá, o Jongo Trio nem foi creditado na capa do álbum, que na época ficou com a fama de ter sido o disco de música brasileira mais vendido até então. "Por justiça, o título desse disco deveria ser Três na Bossa. Nossos advogados tentaram um acordo com a Universal, há pouco mais de um ano, mas eles nem responderam. Acabamos entrando na justiça, sem muita esperança. Eles são muito poderosos", lamenta Sabá.

Nasce o Som Três
Apesar da ótima repercussão do disco de estréia do Jongo Trio, que chegou a ser bem tocado até mesmo nas rádios do Rio de Janeiro, onde reinava o famoso Tamba Trio, o conjunto paulista entrou rapidamente em crise, no início de 1966. Sem uma dimensão exata da originalidade do trio, Sabá e Toninho Pinheiro começaram a ensaiar com um jovem e talentoso pianista paulistano, César Camargo Mariano, que já tinha tocado no quarteto que Sabá comandara na Baiúca - parceria registrada em um compacto duplo, gravado em 1963, pelo selo Audio Fidelity. Assim nasceu o trio que posteriormente veio a se chamar Som Três (nome inspirado no grupo norte-americano The Three Sounds, por sugestão da cantora Marisa Gata Mansa, casada na época com Mariano).

Inicialmente, os três ainda tentaram se apresentar como Jongo Trio, no programa O Fino da Bossa, comandado por Elis Regina, na TV Record. Ao saírem do palco, porém, um oficial de justiça os esperava nos bastidores. "Não sabíamos que o Cido Bianchi tinha registrado o nome do Jongo Trio. Mas ele fez bem, porque demos uma puxada de tapete nele", admite hoje Sabá. O motivo para a separação, segundo o contrabaixista, foi antes de tudo musical. "O Toninho, especialmente, se identificou muito com o César. A mão esquerda dele parece uma escola de samba, além da harmonia, que é fora do normal", elogia.

De cara, o novo trio foi contratado para tocar no programa Spotlight, que Abelardo Figueiredo comandava na TV Tupi. O astro do programa era o cantor Wilson Simonal, outro fenômeno de popularidade, na época. "Ele ficou louco com o nosso conjunto", diz Sabá, lembrando que o trio acabou acompanhando Simonal por quase seis anos, incluindo várias turnês internacionais. A marca do Som Três também ficou registrada nos polêmicos festivais da canção do final dos anos 60. Bastante requisitado, o trio comandado por César Camargo Mariano acompanhou Chico Buarque e MPB-4 em Roda Viva, Roberto Carlos em Maria Carnaval e Cinzas e Beth Carvalho em Andança, entre outros.

"Considero que o Som Três foi muito superior ao Jongo Trio, instrumentalmente falando. O Cido Bianchi é um ótimo pianista, mas o César é um fenômeno, tem um estilo próprio", analisa Sabá, revelando que tentava convencer o novo grupo a gravar mais faixas com vocais, mas não tinha muito sucesso. "Eu insistia que a gente precisava vender o peixe, que o trio precisava cantar, mas o César respondia que o negócio dele não era esse. Quando o Som Três cantava, ao contrário do Jongo, não acontecia nada", reconhece.

O Som Três foi dissolvido um pouco depois da turnê que fez com Wilson Simonal pelo México, durante a Copa do Mundo de 1970. Elis Regina convidou César Camargo Mariano a acompanhá-la em uma temporada de shows no Rio de Janeiro, mas Sabá e Toninho decidiram ficar em São Paulo. Era o fim do trio, que tinha lançado nesse mesmo ano o LP Um É Pouco, Dois é Bom, Este Som Três É Demais, pela Odeon. Nele, além de incursões pelo samba-soul, como Take It Easy My Brother Charles (de Jorge Ben), aparece também a única composição de Sabá em seus quase 60 anos de música. O samba Só Faltava Você foi feito por ele em 1956, quando ainda namorava Ivone, sua esposa há quase 42 anos.

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