Salvador cai na gandaia com o batuque do Percpan

Edição 2002 do festival realizou-se no Teatro Castro Alves, com shows de Gil, Fernanda Abreu e Arnaldo Antunes; leia tudo sobre o festival

José Teles (Recife)
29/04/2002
O grupo francês Lês Tambours du Bronx fechou a primeira noite da nona edição do Panorama Percussivo Mundial (PercPan), no teatro Castro Alves, em Salvador, na última quinta-feira (dia 25). Formado por dezoito músicos, que tocam em pesado latões de óleo (capacidade: 250 litros), batendo com pedaços de cabo de picaretas (que vão sendo substituídos, à medida em que se esfacelam com a ferocidade do batuque), o Lê Tambours du Bronx é na percussão a contraparte do thrash metal do Sepultura. Seus intregrantes são influenciados pelo africano Tambores do Burundi (um dos mais celebrados grupos da percussão mundial), e imprimem um ritmo frenético ao seu trabalho. No melhor estilo tribal, revezam-se como solistas, utilizando também de expressão corporal e pequenas frases cantadas de forma gutural. Foi uma das apresentações mais eletrizantes já vistas no teatro Castro Alves.

Mais o ponto alto da noite, foi a cantora siberiana (naturalizada austríaca) Sainkho Namtschylak. Ela mescla a leveza oriental dos gestos dos braços, do corpo, enquanto se utiliza da laringe, maxilares, língua para criar percussão e harmonia ao mesmo tempo (um estilo conhecido como "canto de garganta"). Sem poder contar com um DJ com o qual se apresenta (também incursiona pela música eletrônica), Sainkho foi acompanhada por dois violões, um deles empunhado por Gilberto Gil. O público (que não lotou o Castro Alves), aplaudiu de pé a impecável apresentação da cantora.

Enquanto se preparava o palco para a próxima atração, Gilberto Gil, com Marcos Suzano ao pandeiro, deliciava a platéia, sacando do fundo do baú da memória antigos sambas cariocas (um deles, Mãe Solteira, de Wilson Batista, gravado por Roberto Silva), cocos de Ary Lobo, e, de lambuja, mostrou uma prévia de algumas músicas que estão no seu disco-tributo a Bob Marley. Os primeiros brasileiros da noite foram os ainda verdes garotos do Sucatamania, grupo formado por garotos, a maioria adolescentes, moradores do bairro pobre de Alagados, ligado a ONG Bagunçaço. Pegos de surpresa com o convite para tocar no PercPan, os meninos (mais quatro meninas bailarinas) não pareciam estar à vontade no formal ambiente do Castro Alves. Mesmo assim mostraram que têm futuro, seu estilo treme-terra de percussão não vai demorar a animar os carnavais soteropolitanos.

O carioca Moska, junto ao Explosão de Elite destoou do clima percussivo (o que vem sendo adotando pelo PercPan desde 1998), com um show baseado no seu último CD, Eu Falso da Minha Vida o que Quiser. A participação de dez ritmistas da Mangueira não combinou com as canções pop de Moska, para as quais eram mais que suficientes o virtuosismo de Marcos Suzano, segurando a cozinha rítmica com cajon, bateria, pandeiro - ratificando ser um dos melhores percussionistas do país.

O extravio de parte dos instrumentos do Renegades Steel Band (do Trinidad Tobago) fez com que o final do PercPan para valer fosse adiado para o sábado. É que tradicionalmente o derradeiro dia do festival é uma espécie de show coletivo que reúne todos os músicos numa mesma noite, cada qual fazendo um resumo de suas apresentações. A banda caribenha só mostrou no sábado, por inteiro, o show que não pode realizar na noite da sexta-feira.

A nona edição do Panorama Percussivo Mundial teve na sexta apresentações dos baianos do Hip Hop Hoots, do italiano Aldo Brizzi - com Arnaldo Antunes - e da cantora Fernanda Abreu. O Hip Hop Hoots assinalou para uma nova mistura na música brasileira, um crossover do baticum baiano com o rap. No entanto, se a percussão foi muito-bem-obrigado, o hip hop deixou a desejar, entregue a um rapper mau cantor e devagar de suingue. O rap do Hip Hop Hoots foi bom de ritmo e ruim de poesia.

Já a dupla Aldo Brizzi & Arnaldo Antunes levou ao pé da letra a origem do termo rap. Os dois, mais um grupo de percussionistas baianos, batizado de Terra em Transe. Brizzi regeu o grupo com uma batuta, num sincronismo perfeito entre gestos e batuques, e pilotando um laptop coloriu de sons a poesia declamada por Arnaldo Antunes, entre as quais Abraça o Meu Abraço, parceria dele com o italiano. A apresentação ficou dentro do espírito inicial do festival, a percussão. Canção mesmo apenas uma, Paradeiro, do seu mais recente CD.

Fernanda Abreu, que involuntariamente fechou a segunda noite do PercPan, fez um show de carreira. Com percussão eletrônica, é certo, mas essencialmente pop, o que aliás é uma tendência das últimas quatro edições do festival. Foi uma apresentação de pouco mais de meia hora, com um repertório iniciado com Jorge da Capadócia de Caetano Veloso, passando por Jacksoul Brasileiro, de Lenine, e terminando com o samba enredo Samba do Abaeté, no qual ele contou com a participação de ritmistas da bateria da Mangueira.

A Marcos Suzano coube a dura tarefa de apresentar o festival sozinho, pois Gilberto Gil viajou ao Recife, para a estréia do filme Viva São João, de Andrucha Waddington, do qual ele participa como narrador. O filme concorre ao prêmio de longa-metragem no festival de cinema que terminou no último sábado, na capital pernambucana. Não se saiu mal como mestre de cerimônias (tocando com a banda que o acompanha em shows), porém era visível seu constrangimento ao anunciar, de última hora, que o show do Renegades Steel Band ficaria para a noite do sábado.

A apresentação dos Renegades Steel Band, que fechou a última noite do PercPan, acabou em carnaval fora de época, para desespero do diretor do Teatro Castro Alves (certamente a casa de espetáculos de normas mais rígidas do país). O início da apresentação dos caribenhos, no entanto, foi marcada pela curiosidade. Todos querendo saber de onde vinham os sons de teclados (marimba, xilofone, piano), que fluía do palco no qual só se viam instrumentos de percussão, e uma dúzia de latões de óleo combustível. O segredo estava exatamente nos latões, na verdade teclados improvisados (o fundo dos latões é aquecidos e envergados para dentro. Tocando-se neles, como se fossem marimbas, obtém-se as harmonias que teoricamente seriam impossíveis de ser produzidas, mas são, conforme comentava o percussionista Marcos Suzano). Os músicos que pilotam os latões tocam em um sincronismo perfeito e com virtuosismo. O repertório é que não traz novidades, vai do clássico do suíngue In the Mood até No Woman No Cry, de Bob Marley, chegando a uma impagável Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Passado o instante de perplexidade, o público caiu na dança, e o fechamento do PercPan foi uma espécie de carnaval fora de época, um Micaribe.

No mais, o festival manteve-se dentro da tradição. Cada convidado repassou sua apresentação das noites anteriores. A cantora siberiana Sainkho Namtschylak fez um pouco mais que isso. Sacou da garganta outros timbres exóticos, e mais uma vez foi aplaudidíssima (seus discos, postos à venda no teatro, esgotaram-se rapidamente). O grand finale aconteceu ao som dos Renegades Steel Band, uma comunhão entre artistas e público. Dança na platéia e no palco, um happy end para um festival que, por dificuldade de patrocínio, foi produzido às pressas, sofreu contratempos, e acabou em happy end na madrugada do domingo.

Em novembro o PercPan volta a realizar-se na praça do Marco Zero, no Recife. Ano que vem, a produtora Beth Cayres promete um megaevento em Salvador para comemorar os dez anos do festival. Ao menos fisicamente, a capital de Pernambuco oferece as melhores condições para sua realização. Afirmaram os diretores artísticos do evento, Gilberto Gil e Marcos Suzano: "O ideal é que fosse em espaço aberto, mas não existe em Salvador um local semelhante ao Marco Zero, no Recife, uma praça projetada com a finalidade de abrigar espetáculos para um grande público. O show lá, em termos de qualidade de som, foi maravilhoso"