Selo Sambaloco dá <i>electronica</i> para as massas

Coletânea dupla resume o trabalho da gravadora que ajudou a consolidar a nova música eletrônica brasileira

Marco Antonio Barbosa
02/10/2001
Bruno E, mentor do selo Sambaloco e produtor do projeto O Discurso (clique para ampliar)
Drum'n'bass é coisa nossa. Tanto quanto o samba, a caipirinha e as mulatas. É sério isso? Pior que é. Nascido e desenvolvido na Inglaterra, o d'n'b - a porção mais negra da música eletrônica, que agrega jazz, reggae e hip hop às frenéticas batidas programadas - encontrou no Brasil sua mais fértil colônia. A ponto de nosso país ser o segundo maior centro produtor e consumidor de drum'n'bass do mundo, ficando só atrás da Grã-Bretanha. Quem garante isso é Bruno E, diretor do selo Sambaloco e um dos grandes responsáveis por essa proeminência do gênero por aqui. Em quatro anos à frente da gravadora, Bruno concentrou um cast de artistas e produtores que não apenas tornaram o drum'n'bass o estilo de música eletrônica mais difundido no país - mas que também projetaram uma face inusitada da musicalidade brasileira no exterior.

"O selo é uma aposta consciente não só no drum'n'bass, mas também na música eletrônica negra de modo geral. E isso vale a pena, pois o Brasil é hoje a segunda potência mundial do d'n'b. Nos EUA (o estilo) não aconteceu, e no resto da Europa ouve-se mais house e techno puro", explica Bruno Eduardo Pires de Souza - Bruno E - fundador do Sambaloco e mentor do projeto O Discurso (que faz drum'n'bass, claro). Desde 1997, Bruno tem arregimentado talentos mais do que consagrados. Das estrelas internacionais Marky e Patife (considerados dois dos melhores DJs de d'n'b do mundo) a alguns dos mais respeitados produtores eletrônicos brasileiros (Ramilson Maia, XRS Land, Anvil FX, Drumagick). O creme desta produção fértil está concentrado no álbum Sambaloco Espiritual Drum'n'bass Vol.1, ambicioso disco duplo com 24 faixas inéditas. Um verdadeiro compêndio que prova a concentração do estilo na mente das cabeças pensantes de nossa electronica.

Como explicar essa preferência nacional pelo d'n'b? Bruno E teoriza: "Esteticamente, o drum'n'bass tem a ver com a nossa musicalidade - o samba, a ênfase no ritmo, as batidas 'quebradas' (em oposição à levada reta, sem viradas, que caracteriza estilos como o techno ou o trance). Vejo o d'n'b como a continuação do som negro que sempre fez sucesso na periferia de cidades como São Paulo; começa nos anos 70 com os bailes de black music, virou para o hip hop nos anos 80 e agora é eletrônico." O potencial ideológico do rap também vem a reboque, acredita Bruno. "O hip hop é um movimento musical que também engloba uma preocupação social. A música negra sempre foi mais articulada, engajada, e isso também vale para o drum'n'bass. Isso também faz parte do apelo junto à massa."

A massa, no caso, é a multidão de jovens pobres de São Paulo (meca do d'n'b e lar da maioria dos artistas da Sambaloco) que vara as madrugadas dançando drum'n'bass em clubes na periferia. O fato de ser um som essencialmente "do povão" é o que explica, para Bruno E, a disseminação do d'n'b pelos estúdios nativos. "Minha briga é fazer um selo que mostre a face popular da música eletrônica. Muita gente acha que tudo nasceu na zona sul, nos bairros chiques, mas a periferia sempre soube mais - conhecia mais sobre música, era mais exigente com os DJs. O Marky nasceu e mora na periferia e hoje é o maior DJ brasileiro, tocando só drum'n'bass", diz Bruno. "Elitizar a música eletrônica é bobagem. O termo clubber é uma invenção de coluna social que só existe no Brasil."

O diretor do Sambaloco deve conhecer bem os males da elitização: nasceu em Goiânia (afinal, uma das periferias brasileiras, num nível mais amplo) e mudou-se para São Paulo em 1991. Radicou-se na periferia e começou sua carreira como produtor na seara do hip hop, trabalhando com o Pavilhão 9. "Sei a diferença que há entre a zona sul e a periferia. Por isso, quando resolvi montar o selo, dei importância ao som que eu conhecia. Desde que cheguei a São Paulo que a cena da black music ferve: são 40 mil pessoas por fim de semana dançando de tudo. E afinal de contas a música eletrônica também é negra - a house e o techno são invenções dos negros de Detroit (EUA), por mais que hoje tudo pareça bem mais 'branco' hoje em dia", relata Bruno E.

Em 1997 surge o Sambaloco, que nasceu de um embrião formado por Bruno, Xerxes de Oliveira (do XRS Land) e o também produtor Mad Zoo. "Eles me influenciaram a cair dentro do d'n'b. A idéia inicial do selo era chamar nossos amigos que estavam produzindo para lançar suas coisas. Mas acabou crescendo, se expandindo. Infelizmente ainda não dá para fazer o mapeamento completo do Brasil todo, porque nossa estrutura ainda é pequena", diz o diretor. Ainda assim, a expansão foi suficiente para abarcar artistas de fora de São Paulo - como Ramilson Maia, da Bahia, ou os produtores do coletivo B.U.M., do Rio de Janeiro - e outros não 100% associados ao drum'n'bass, como a dupla AD (big beats) e o Loop B (veterano do techno industrial, presente em Espiritual Drum'n'bass).

A coletânea dupla vem para marcar a evolução do selo e por tabela da própria música eletrônica brasileira nos anos 90. "O disco tinha de ser bem representativo. Reunimos o maior número possível de pessoas do Brasil inteiro, e só os artistas que tivessem um conteúdo devidamente amadurecido. Também demos chance para artistas novos e para gente não-contratada. Propositalmente, o CD 1 tem temas mais melódicos, enquanto o CD 2 é mais para os clubes: fizemos isso para mostrar a diversidade que pode haver dentro do drum'n'bass", narra Bruno.

O sucesso que DJs como Marky e Patife têm feito na Europa são a ponta do iceberg da projeção que o Sambaloco vem angariando no exterior. Este ano, o EP Brazil - com Marky, XRS Land e Patife - foi lançado pelo selo V Recordings, um dos mais respeitados da cena eletrônica inglesa. E em junho último, um coletivo de artistas do selo se apresentou no festival Sonar (na Espanha), um dos maiores eventos europeus dedicados aos beats sintéticos. "Temos tido uma resposta rápida. É um grande contraste com a nossa posição aqui no Brasil, que é um mercado no qual o dinheiro compra tudo. Lá fora o que vale é a credibilidade. Já conseguimos parcerias às quais não há dinheiro que pague", diz Bruno. "No exterior, o Sambaloco representa mais do que o Brasil; somos os únicos da América Latina no mercado. Ainda assim, não pensamos em deixar o país. É mais vantagem licenciar conteúdo para outros selos."

Bruno aposta agora no colega XRS Land como o próximo estouro do Sambaloco no circuito eletrônico mundial. "Ele é nossa aposta agora, depois do Marky. O Xerxes conseguiu incluir uma música na coletânea oficial do Sonar deste ano, junto com um monte de nomes importantes", conta o produtor. Só falta uma coisa para Bruno E agora: ter mais tempo para seu próprio projeto musical, O Discurso, um dos grupos fundadores da gravadora. "Não posso fazer shows, não dá tempo para mais nada", suspira Bruno. "Só que o meu conceito de sucesso é relativo. Os discos d'O Discurso podem vender pouco, e mesmo assim fazer sucesso - por agregar valores e conquistar prestígio. Mas o selo dá muito trabalho."