Silvério Pessoa incorpora Jacinto Silva

Ex-vocalista do Cascabulho homenageia o pioneiro compositor pernambucano com o primeiro CD do projeto Bate o Mancá

Marco Antonio Barbosa
24/05/2001
Você sabe o que é um mancá? Mancá é uma peça fundamental para o funcionamento dos carros de boi. E é de carros de boi, usinas de açúcar, canaviais e sol a pino que se compõe o imaginário de O Povo dos Canaviaisouvir 30s , primeiro disco do "projeto" Bate o Mancá. Nas rédeas, Silvério Pessoa, ex-vocalista do grupo pernambucano Cascabulho - que, assim como em sua antiga banda, usa a obra de um pioneiro compositor nordestino como trampolim para sons mais universais. No Cascabulho, a referência era Jackson do Pandeiro. O Bate o Mancá, por sua vez, vem seguindo as pegadas de Jacinto Silva. O Povo dos Canaviais é todo composto de releituras de músicas de Jacinto, falecido em fevereiro último. (Em tempo: o encarte do disco traz um gráfico bem detalhado sobre a "geometria" dos carros de boi, explicando inclusive a função do mancá.)

"Jacinto Silva é um elemento presente na minha alma. Para mim ele é um dos ícones da música nordestina, tão forte quanto Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro", afirma Silvério, que ainda filosofa: "A música de Jacinto é parte importante do imenso prisma da música nordestina, de onde sai luz para todos os lados. Ele é uma das luzes mais brilhantes". Em O Povo dos Canaviais pode se ter uma amostra da inventividade de Jacinto como compositor, que trafegava entre vários ritmos (samba de roda, coco, embolada e o forró mais convencional). "É tudo música de terreiro. Nada disso é novidade para os nordestinos", considera o cantor.

O Povo dos Canaviais é a concretização em CD de uma relação que já ultrapassava a mera admiração. Silvério conheceu Jacinto Silva em 1995, antes mesmo de formar o Cascabulho. "Eu o conheci em Caruaru, mas ele já fazia parte de meu imaginário. Cresci ouvindo suas músicas no rádio, na Zona da Mata pernambucana. Para mim, homenageá-lo era muito importante; deixei até minha produção como compositor de lado. Quero que o disco tenha um sentido educativo, que ajude as pessoas a conhecer a obra de Jacinto e também para preservá-la", conta Silvério. Enquanto seguia com o Cascabulho, Silvério aprofundou a amizade pessoal com Jacinto Silva e acalentava planos de um projeto paralelo ao grupo, dedicado às músicas do compositor. "Ele dizia que as músicas dele eram minhas também", lembra Silvério. No festival Abril Pro Rock do ano passado, o Bate o Mancá fez sua estréia oficial ao vivo, já numa época em que Silvério dava sinais de insatisfação com sua situação no Cascabulho. "Sou muito inquieto, então resolvi sair da banda para perseguir um projeto de realização pessoal. Sei que fiz um bom trabalho com eles, mas estou muito mais feliz agora", diz o cantor.

O álbum foi sendo registrado ao longo do ano passado, com participações de gente como BNegão, do Planet Hemp, Marcelo e Zé Brown do Faces do Subúrbio (os três soltam um repente - ou seria rapente?! - na faixa Amor de Carpinteiro), Lula Queiroga (co-produtor do CD), Zé da Flauta e Lirinha (do Cordel do Fogo Encantado). "Apesar do Bate o Mancá ser uma viagem completamente minha, pessoal, essa galera foi fundamental para concretizar o disco", considera Silvério. Não poderia faltar o próprio Jacinto Silva: o disco traz suas últimas gravações, como um dueto com Silvério (em Aquela Rosa) e um sample extraído de uma gravação caseira (inserido em Casa de Aranha).

Silvério não teme ficar restrito aos clichês nordestinos e diz que, mesmo em se tratando de um trabalho de resgate bem específico, o Bate o Mancá almeja a universalidade. "Acho que o momento é oportuno; afinal, o forró está em alta, todo mundo louva Luiz Gonzaga, Gilberto Gil acabou de lançar um disco de forró... Mas eu sou o que sou. Trata-se de um trabalho muito espontâneo. O que é verdadeiro fica", diz o cantor, que completa: "Apesar de ter trocado a sonoridade mais pop do Cascabulho por um som mais regional, folclórico, não acho que andei para trás".

O complemento de O Povo dos Canaviais no trabalho de preservação da obra de Jacinto Silva é o site Bate o Mancá (www.bateomanca.mus.br), já no ar mas ainda em construção. "Estou trabalhando, junto com a família de Jacinto, num catálogo completo da obra dele. Queremos colocar isso tudo no site, a relação de todos os discos que ele gravou desde os anos 50. Infelizmente, vamos ter de ficar só nisso: é quase impossível recuperar os fonogramas, muita coisa já se perdeu", conta Silvério. O próximo passo seria a construção da Casa do Forró, um memorial à obra de Jacinto construído com o apoio da prefeitura de Caruaru. "Penso em uma visão mais ampla, um espaço que tenha não só as recordações da vida e da carreira de Jacinto, mas também possa mostrar como o próprio forró nasce, dentro de seu contexto social", revela Silvério.

E, em meio a tanto resgate, como fica a criatividade própria de Silvério - que define a si mesmo como um "compositor compulsivo"? "Tenho mais de trinta músicas prontas, mas não tenho pressa de lançá-las: quero trabalhar este disco do Bate o Mancá por uns dois anos, antes de gravar meu próximo álbum", diz Silvério. Na turnê promocional do novo projeto (que começa oficialmente dia 14 de junho, com um show em Caruaru), Silvério canta não só as músicas de Jacinto, mas também várias do Cascabulho - que, por sinal, continua seu rumo sem o vocalista. "Canções como Vovó Alaíde e Vendedor de Amendoim são minhas; o Cascabulho apenas as gravou (no álbum Fome Dá Dor de Cabeçaamostras de 30s). Deixei para lá todas as brigas judiciais com o grupo, mas as músicas sempre serão minhas", sustenta Silvério.