Talento da <i>Divina</i> Elizeth merece caixa quádrupla

Quatro dos mais marcantes trabalhos da cantora, falecida há 13 anos, retornam no box Faxineira das Canções

Marco Antonio Barbosa
30/07/2003
"(...) O Brasil inteiro cantou com ela o Canção de Amor, elevando-a ao status de estrela. ('Estrelas/ Vivem no céu sozinhas', cantaria nos versos do único samba que compôs, confessional, desabafando: 'Estrelas/ Eu nunca fui feliz'). Pode não ter sido, mas sua voz foi um bálsamo para muitos corações." Definição que cairia como uma luva para um verbete sobre Elizeth Cardoso na história da nossa música popular, cunhada por Hermínio Bello de Carvalho - amigo pessoal, produtor e profundo conhecedor da vida e da obra da Divina. As palavras de Hermínio compõem uma pequena biografia incluída de bônus na luxuosa caixa Elizeth Cardoso - Faxineira das Canções, lançada pela gravadora Biscoito Fino. Concebido e coordenado pelo próprio Hermínio, o box junta quatro álbuns (um duplo) finamente remasterizados, cada qual capturando um momento singular na trajetória da intérprete; carreira esta iniciada em 1936 e que iria até o ano de sua morte em 1990. Uma homenagem à altura do culto que se ergueu em torno da voz e das interpretações da Divina.

Os quatro álbuns encaixotados tiveram, além da remasterização, um resgate completo de sua parte gráfica original (incluindo letras e notas de contracapa) e novos textos assinados por Hermínio. Para os completistas, o grande atrativo é a reedição de Luz e Esplendor, álbum lançado originalmente em 1986 para comemorar os 50 anos de carreira de Elizeth. O relançamento incluiu quatro faixas extras (uma das quais um pout-pourri). Ganha status de documento histórico o CD duplo Ao Vivo no Teatro João Caetano (1968), registro de um recital da cantora acompanhada pelos grupos Época de Ouro e Zimbo Trio e Jacob do Bandolim. E a emoção domina Ary Amoroso e Todo o Sentimento, ambos de 1990, os dois últimos discos que Elizeth completaria antes de sua morte, em maio daquele. O primeiro revisita o repertório de Ary Barroso; no segundo, acompanhada apenas por Rafael Rabello ao violão, relê uma seleção caprichada de clássicos. "É hora de agradecer a oportunidade de editar essa caixa que reconduz Elizeth, na sua integralidade, a um público que nem sempre é respeitado em sua inteligência", observa Hermínio Bello de Carvalho, referindo-se à proliferação de relançamentos da discografia da cantora, alguns deles primando pela falta de critério.

Lançado originalmente em vinil duplo, Ao Vivo no Teatro João Caetano resume o espetáculo que Elizeth fez no famoso palco carioca, no dia 19 de fevereiro de 1968. O teatro, superlotado (mais de 1500 espectadores) mesmo em uma noite de chuva intensa, presenciou momentos inesquecíveis. Como a apresentação da Suite Elizetheana, juntando Canção de Amor, Nossos Momentos, Apelo e Consolação. Ou a comprovação da faiscante cumplicidade entre Elizeth e o Zimbo Trio, que ia de Ary Barroso (É Luxo Só) à então moderníssima dupla Baden-Vinicius (Tem Dó, Apelo). Sem esquecer o encontro entre a cantora e Jacob do Bandolim com o Época de Ouro (com direito a músicas de Jacob então inéditas em disco, como Jamais e Divinal). Note-se que é a primeira vez que a íntegra do concerto (2h20min) ganha versão em disco, com direito a todo o repertório e às intervenções faladas de Elizeth e Jacob. "A versão à capela de Canção do Amor Demais, por exemplo, tinha sido excluída dos lançamentos anteriores", lembra Hermínio. As fitas originais que serviram de base para a remasterização estavam repletas de problemas técnicos e foi necessário um trabalho minucioso de Luiz Tornaghi, do estúdio Visom, para pôr tudo em ordem.

Ainda sob a tutela de Hermínio (que assinou o roteiro do show no João Caetano), a caixa dá um salto no tempo para 1986, com o disco Luz e Esplendor. "Na época, Elizeth estava sendo afastada do mercado fonográfico. 'Não vende discos', pretextavam as gravadoras. Estava cantando como nunca, mas o público escasseava", lembra, amargurado, o produtor. O repertório nasceu de um espetáculo homônimo que Hermínio organizou para a estrela, que estreou naquele mesmo ano. O álbum, feito para comemorar "as bodas de ouro de Elizeth com a música", como fala Hermínio, junta figurões como Alcione, Cauby Peixoto, Nana Caymmi e Maria Bethânia (todos no medley Elizetheana), Paulinho da Viola e D.Ivone Lara (ambos em Felicidade Segundo Eu e Joyce (na faixa que dá título à caixa, Faxineira das Canções, composta pela própria Joyce, para Elizeth). Os bônus escolhidos por Hermínio incluem a raridade Seresta nº5 (Modinha) (Villa-Lobos/Manuel Bandeira), gravada em 1974 e tirada de uma fita do arquivo pessoal de Elizeth. É a primeira vez que o álbum ganha versão digital.

Apesar de registrados durante os momentos finais de Elizeth, os dois outros discos da caixa não deixam a tristeza transparecer. A cantora descobriu em 1987, durante uma excursão pelo Japão, que sofria de câncer. A doença não a impediu de seguir cantando e de aceitar, em 1989, a proposta de gravar um disco em homenagem a Ary Barroso. Nascia Ary Amoroso, que, por ser um projeto especial (a gravação foi bancada por uma fábrica de móveis, que distribuiu o disco como brinde a seus clientes), ainda não tinha sido lançado comercialmente até hoje. Junto a um time de grandes músicos - Rafael Rabello, Gilson Peranzetta, Mauro Senise, David Chew, Sivuca, Wilson das Neves e Marcos Suzano, para citar alguns - Elizeth driblou seu precário estado de saúde para regravar, com muita emoção, pérolas como Inquietação, Folha Morta e Pra Machucar meu Coração.

Finalmente, Todo o Sentimento marca o adeus de Elizeth e seu encontro definitivo com o violonista Rabello. "Elizeth sempre se deu bem com os violões", relembra Hermínio, citando os legendários shows da cantora com Baden Powell, nos anos 60 e 70. Versão de estúdio (gravada em um único dia) de um espetáculo que a dupla vinha realizando naquele ano de 1989, o disco mostra a bela sintonia entre o genial instrumentista, de 27 anos, e a quase septuagenária intérprete. Das primevas canções que interpretava nos anos 30 (No Rancho Fundo, por exemplo) à mais recente safra da MPB (a faixa-título), Elizeth revia praticamente todas as fases mais marcantes de sua carreira, tendo como único acompanhamento o violão rascante de Rafael. Pouco menos de um mês depois da conclusão do disco, Elizeth falecia, no Rio de Janeiro. Ficava a certeza já descrita por Chico Buarque nas notas originais do LP, mantidas na reedição em CD: "Nossa cantora mais amada, a mãe de todas as cantoras do Brasil."