Tocadores mantém viva a real música popular
Tradição oral dos instrumentistas e compositores é resgatada em livro que mapeia seus principais focos de resistência
Mônica Loureiro
04/02/2003
Nas grandes cidades, a preocupação que norteia o mercado fonográfico está única e diretamente ligada a vendas e sucesso. Mas basta dar um passo para fora desses holofotes e perceber que, no interior do Brasil, se a produção musical não dispõe de tal estrutura, nem por isso está parada. De forma oral, muitas vezes passando conhecimentos através da própria família, pode-se encontrar gente que mantém viva tradições como folia-de-reis e fandango e que constrói seus próprios instrumentos. A realidade de alguns desses brasileiros é enfocada detalhadamente no livro Tocadores - Homem, Terra, Música e Cordas, de autoria de Lia Marchi, Juliana Saenger e do violeiro Roberto Corrêa.
Personagens como Seu Rosa, 80 anos, violeiro e guia de folia, ou Aurélio Domingues, 26 anos, tocador e construtor de rabeca, têm seus depoimentos fielmente registrados no livro. São pequenos exemplos de como o Brasil ainda pode ser desconhecido aos próprios brasileiros. Em entrevista ao BIS, a produtora e pesquisadora Lia fala desse trabalho e de como a música faz parte da vida - sendo a própria vida - dessas pessoas.
Cliquemusic: De quem foi a idéia do projeto Tocadores?
Lia Marchi: O projeto surgiu em 1998, quando comecei a conhecer um pouco mais sobre a música de tradição oral. Quando conheci os fandangueiros de Guaraqueçaba (PR), surgiu a idéia de fazer um trabalho sobre a vida e a música dessas pessoas. Depois encontrei Roberto Corrêa (violeiro e co-autor do livro), outras pessoas da equipe e o projeto foi se definindo.
Por que a pesquisa se limita ao Brasil Central e Litoral Sul?
As regiões foram escolhidas de uma maneira natural, pois eu já conhecia muita gente aqui no Paraná e Roberto e Juliana conheciam o Brasil Central. Temos tanta riqueza em cada lugar que não caberia tudo em um só livro. O número reduzido de trabalhos publicados sobre esse tema também foi um estímulo à pesquisa.
Como se decidiu por esse formato do texto - não corrido e sim vários blocos interligando-se?
A idéia era permitir que o leitor pudesse ter uma conversa com os tocadores e que fosse aos poucos entrando no universo deles, daí a divisão em temas, que aparecem em vários tocadores, como aprendizado, amor pelo instrumento etc. Assim, ajudamos a criar um ritmo da conversa, além de intercalar com as imagens que ilustram as histórias e dão um tempo diferente para a leitura.
Roberto Corrêa cita limitações da escrita diante da riqueza do tema. Como foi fazer a transcrição das entrevistas?
Desde o início queríamos manter uma proximidade da fala, pois a idéia de uma conversa com os tocadores conduzia o livro. Também achávamos que seria impossível padronizar vocabulários e expressões de regiões tão diferentes. Queríamos que as pessoas pudessem sentir um pouco do que nossa equipe sentiu ao visitá-los e só a proximidade da fala poderia retratar isso.
As manifestações mais presentes na pesquisa são a folia-de-reis e o fandango. Vocês encontraram alguma que ainda fosse desconhecida?
Vimos outras danças e músicas como catira, lundu, o quatro, que até são conhecidas. O que eu nunca tinha visto ao vivo, embora não seja tão desconhecida, foi a derrubada de enxada, que é uma canção de trabalho, no encontro de folias de Reis do Distrito Federal, onde alguns senhores formam uma roda, cantam e usam as enxadas batendo uma na outra. Também encontramos alguns instrumentos hoje raros como o orocongo e o berimbau de boca (registrados no livro através dos depoimentos de Gentil do Orocongo e Lourinho do Berimbau).
O quanto essas manifestações foram ou estão sendo afetadas pela "modernidade"?
Acho que o fazer musical das pessoas, seja na cidade ou no interior, está em constante transformação. Na música de tradição oral não é diferente. A realidade de um folião de 90 anos é diferente da de um jovem, mas mesmo com as transformações naturais, as experiências dos mais velhos são respeitadas.
Em vários momentos cita-se o termo folclore em contraponto à tradição. Como definir ao certo a cultura popular?
Penso que muitas vezes a palavra folclore é usada de maneira pejorativa, ou então numa tentativa de definir um estudo culto sobre uma tradição espontânea, como se o estudo valesse mais que o fato em si. Já o termo cultura popular me parece mais abrangente, como se a gente estivesse mais para dentro desse conjunto do que para fora. O folclore me parece que é uma coisa externa. O mais importante é perceber que essas manifestações fazem parte de um conjunto a que pertencemos, são parte da história do nosso povo e do nosso País. Hoje em dia tem Folia de Reis nas grandes capitais e universitários aprendendo fandango. Esta disposição de conhecer o outro e trocar experiências é que enriquece o resultado do convívio em sociedade.
Você acha que a tradição dos tocadores vai continuar? A maioria das famílias segue as funções? Alguma está ameaçada de acabar?
Acho que a tradição sempre vai existir. Falo um pouco disso no livro: as mudanças acontecem, porém muito mais forte nas vidas dos foliões e fandangueiros são a fé, a música, a viola companheira... A vida nessas regiões tem muito ainda de um outro tempo, de uma tranquilidade, do amor dessas pessoas por suas histórias. Acho que até tem gente que não gosta de folia ou de fandango, mas creio que sempre vai existir aquele amor, o dom do folião, a sabedoria do violeiro.
De tudo, você apontaria alguém ou alguma situação que mais impressionou?
Todos os encontros foram emocionantes e me marcaram profundamente. Uma amiga que leu o livro me disse: "essas pessoas têm a vida na cara" e acho que conhecer cada uma delas teve seu momento especial.
Você é fundadora da Olaria Projetos de Arte e Educação. Fale sobre as atividades e outros projetos.
A Olaria é a minha produtora e existe há cinco anos. Tocadores é o nosso segundo livro, anteriormente produzimos o Espirais de Madeira - Uma História da Arquitetura de Curitiba, de Irã Dudeque e já realizamos projetos em outras áreas como teatro e música. Nesse momento estou numa parceria com o produtor L.M. Stein, de São Paulo, para a realização de dois documentários sobre o projeto Tocadores. Estamos em fase de captação, procurando patrocinadores.
Depoimentos extraídos do livro:
Gentil do Orocongo - Gentil Camilo Nascimento Filho nasceu em 1945, é construtor e toca orocongo e trabalha como vigia noturno. Mora em Florianópolis (SC). Ele fala: "Falar no orocongo pra mim é falá um pouco da minha vida, porque praticamente ele nasceu comigo. (...) Acho que orocongo aqui foi só com essa família, depois teve outra família aí que pegaram com eles. Mas também nào existe mais, pelo menos nesse mundo nosso. (...) em 1957 a gente tava com 12 anos, e fazia a brincadeira do boi-de-mamão, de garoto, e eu já tinha orocongo".
Seu Rosa - Roselverte Antonio Pires nasceu em 1923, é violeiro e guia de Folia de Reis e tem 13 filhos. Mora em Buritis (MG). "A viola parece que me ensina. Quando eu dou o verso, que o meu contra-guia responde o verso, parece que a viola tá me ensinando o que é que eu vou falá no outro verso. Parece que é um dom da natureza, uma coisa assim, uma força (...) Entrô 25 de dezembro, eu deito e durmo e já vejo um terno de folião na minha frente com a bandeira", diz.
Lourinho do Berimbau - Lourenço Batista de Oliveira nasceu em 1927, é construtor e tocador de berimbau de pau e tem nove filhos. Mora em Arinos (MG)."Esse instrumento era feito dos índio, da fábrica dos índio. Que os índio sabe tudo, faz tudo na vida. Os índio é bravo, mas eles é gente igual nós, só tem que eles é bravo. (...) Meus menino sabe cantar no berimbau. Algum que sabe cantá o toque que toco, pode cantá. (...) Mas aqui não tem que sabe tocá e cantá para acompanhar o berimbau."
Aurélio Domingues - Nasceu em 1977, é contrutor e tocador de rabeca e está aprendendo viola. Cursa artes plásticas em Curitiba. Mora em Paranaguá (PR). "Hoje, o fandango faz parte da minha vida, não como um hobby, é uma coisa que acontece espontaneamente. (...) Justamente por eu ter me assumido como caiçara e tá lá com o pessoal (Grupo de fandango Mestre Eugênio da Ilha dos Valadares). O fandango me dá base pra tudo, pra pintura, pras artes, pra compreender até certas coisas, o fandango pra mim é muito útil."
Personagens como Seu Rosa, 80 anos, violeiro e guia de folia, ou Aurélio Domingues, 26 anos, tocador e construtor de rabeca, têm seus depoimentos fielmente registrados no livro. São pequenos exemplos de como o Brasil ainda pode ser desconhecido aos próprios brasileiros. Em entrevista ao BIS, a produtora e pesquisadora Lia fala desse trabalho e de como a música faz parte da vida - sendo a própria vida - dessas pessoas.
Cliquemusic: De quem foi a idéia do projeto Tocadores?
Lia Marchi: O projeto surgiu em 1998, quando comecei a conhecer um pouco mais sobre a música de tradição oral. Quando conheci os fandangueiros de Guaraqueçaba (PR), surgiu a idéia de fazer um trabalho sobre a vida e a música dessas pessoas. Depois encontrei Roberto Corrêa (violeiro e co-autor do livro), outras pessoas da equipe e o projeto foi se definindo.
Por que a pesquisa se limita ao Brasil Central e Litoral Sul?
As regiões foram escolhidas de uma maneira natural, pois eu já conhecia muita gente aqui no Paraná e Roberto e Juliana conheciam o Brasil Central. Temos tanta riqueza em cada lugar que não caberia tudo em um só livro. O número reduzido de trabalhos publicados sobre esse tema também foi um estímulo à pesquisa.
Como se decidiu por esse formato do texto - não corrido e sim vários blocos interligando-se?
A idéia era permitir que o leitor pudesse ter uma conversa com os tocadores e que fosse aos poucos entrando no universo deles, daí a divisão em temas, que aparecem em vários tocadores, como aprendizado, amor pelo instrumento etc. Assim, ajudamos a criar um ritmo da conversa, além de intercalar com as imagens que ilustram as histórias e dão um tempo diferente para a leitura.
Roberto Corrêa cita limitações da escrita diante da riqueza do tema. Como foi fazer a transcrição das entrevistas?
Desde o início queríamos manter uma proximidade da fala, pois a idéia de uma conversa com os tocadores conduzia o livro. Também achávamos que seria impossível padronizar vocabulários e expressões de regiões tão diferentes. Queríamos que as pessoas pudessem sentir um pouco do que nossa equipe sentiu ao visitá-los e só a proximidade da fala poderia retratar isso.
As manifestações mais presentes na pesquisa são a folia-de-reis e o fandango. Vocês encontraram alguma que ainda fosse desconhecida?
Vimos outras danças e músicas como catira, lundu, o quatro, que até são conhecidas. O que eu nunca tinha visto ao vivo, embora não seja tão desconhecida, foi a derrubada de enxada, que é uma canção de trabalho, no encontro de folias de Reis do Distrito Federal, onde alguns senhores formam uma roda, cantam e usam as enxadas batendo uma na outra. Também encontramos alguns instrumentos hoje raros como o orocongo e o berimbau de boca (registrados no livro através dos depoimentos de Gentil do Orocongo e Lourinho do Berimbau).
O quanto essas manifestações foram ou estão sendo afetadas pela "modernidade"?
Acho que o fazer musical das pessoas, seja na cidade ou no interior, está em constante transformação. Na música de tradição oral não é diferente. A realidade de um folião de 90 anos é diferente da de um jovem, mas mesmo com as transformações naturais, as experiências dos mais velhos são respeitadas.
Em vários momentos cita-se o termo folclore em contraponto à tradição. Como definir ao certo a cultura popular?
Penso que muitas vezes a palavra folclore é usada de maneira pejorativa, ou então numa tentativa de definir um estudo culto sobre uma tradição espontânea, como se o estudo valesse mais que o fato em si. Já o termo cultura popular me parece mais abrangente, como se a gente estivesse mais para dentro desse conjunto do que para fora. O folclore me parece que é uma coisa externa. O mais importante é perceber que essas manifestações fazem parte de um conjunto a que pertencemos, são parte da história do nosso povo e do nosso País. Hoje em dia tem Folia de Reis nas grandes capitais e universitários aprendendo fandango. Esta disposição de conhecer o outro e trocar experiências é que enriquece o resultado do convívio em sociedade.
Você acha que a tradição dos tocadores vai continuar? A maioria das famílias segue as funções? Alguma está ameaçada de acabar?
Acho que a tradição sempre vai existir. Falo um pouco disso no livro: as mudanças acontecem, porém muito mais forte nas vidas dos foliões e fandangueiros são a fé, a música, a viola companheira... A vida nessas regiões tem muito ainda de um outro tempo, de uma tranquilidade, do amor dessas pessoas por suas histórias. Acho que até tem gente que não gosta de folia ou de fandango, mas creio que sempre vai existir aquele amor, o dom do folião, a sabedoria do violeiro.
De tudo, você apontaria alguém ou alguma situação que mais impressionou?
Todos os encontros foram emocionantes e me marcaram profundamente. Uma amiga que leu o livro me disse: "essas pessoas têm a vida na cara" e acho que conhecer cada uma delas teve seu momento especial.
Você é fundadora da Olaria Projetos de Arte e Educação. Fale sobre as atividades e outros projetos.
A Olaria é a minha produtora e existe há cinco anos. Tocadores é o nosso segundo livro, anteriormente produzimos o Espirais de Madeira - Uma História da Arquitetura de Curitiba, de Irã Dudeque e já realizamos projetos em outras áreas como teatro e música. Nesse momento estou numa parceria com o produtor L.M. Stein, de São Paulo, para a realização de dois documentários sobre o projeto Tocadores. Estamos em fase de captação, procurando patrocinadores.
Depoimentos extraídos do livro:
Gentil do Orocongo - Gentil Camilo Nascimento Filho nasceu em 1945, é construtor e toca orocongo e trabalha como vigia noturno. Mora em Florianópolis (SC). Ele fala: "Falar no orocongo pra mim é falá um pouco da minha vida, porque praticamente ele nasceu comigo. (...) Acho que orocongo aqui foi só com essa família, depois teve outra família aí que pegaram com eles. Mas também nào existe mais, pelo menos nesse mundo nosso. (...) em 1957 a gente tava com 12 anos, e fazia a brincadeira do boi-de-mamão, de garoto, e eu já tinha orocongo".
Seu Rosa - Roselverte Antonio Pires nasceu em 1923, é violeiro e guia de Folia de Reis e tem 13 filhos. Mora em Buritis (MG). "A viola parece que me ensina. Quando eu dou o verso, que o meu contra-guia responde o verso, parece que a viola tá me ensinando o que é que eu vou falá no outro verso. Parece que é um dom da natureza, uma coisa assim, uma força (...) Entrô 25 de dezembro, eu deito e durmo e já vejo um terno de folião na minha frente com a bandeira", diz.
Lourinho do Berimbau - Lourenço Batista de Oliveira nasceu em 1927, é construtor e tocador de berimbau de pau e tem nove filhos. Mora em Arinos (MG)."Esse instrumento era feito dos índio, da fábrica dos índio. Que os índio sabe tudo, faz tudo na vida. Os índio é bravo, mas eles é gente igual nós, só tem que eles é bravo. (...) Meus menino sabe cantar no berimbau. Algum que sabe cantá o toque que toco, pode cantá. (...) Mas aqui não tem que sabe tocá e cantá para acompanhar o berimbau."
Aurélio Domingues - Nasceu em 1977, é contrutor e tocador de rabeca e está aprendendo viola. Cursa artes plásticas em Curitiba. Mora em Paranaguá (PR). "Hoje, o fandango faz parte da minha vida, não como um hobby, é uma coisa que acontece espontaneamente. (...) Justamente por eu ter me assumido como caiçara e tá lá com o pessoal (Grupo de fandango Mestre Eugênio da Ilha dos Valadares). O fandango me dá base pra tudo, pra pintura, pras artes, pra compreender até certas coisas, o fandango pra mim é muito útil."