Todos os tempos de Paulinho da Viola

Documentário sobre o cotidiano e as idéias do sambista portelense entra em circuito comercial

Marco Antonio Barbosa e Mônica Loureiro
28/07/2003
Não há quem conheça Paulinho da Viola e não relacione, entre os traços marcantes da personalidade do sambista, sua timidez e a reserva com que lida com sua vida pessoal. Pois bem, tudo isso foi posto de lado: o portelense autor de Foi um Rio que Passou em Minha Vida e Sinal Fechado abriu o coração para a cineasta Izabel Jaguaribe, que em retribuição rodou o documentário Paulinho da Viola - Meu Tempo é Hoje. O filme estreou em circuito comercial na última sexta-feira (dia 25), depois de encantar muita gente em festivais e exibições especiais. "O filme é um leque das pessoas, coisas e lugares que têm ligação com a minha vida", disse Paulinho em entrevista ao Cliquemusic.

Ao longo dos 83 minutos de projeção, o que se vê na tela não é uma cinebiografia convencional, relatando a vida e a carreira de Paulinho. "É um filme sobre o tempo do Paulinho. Quisemos entrar na privacidade dele, mostrar o convívio dele com a família, o dia-a-dia", fala Izabel Jaguaribe. Roteirizado pelo jornalista Zuenir Ventura (que também conduz as entrevistas com o músico na tela), Meu Tempo É Hoje não se pretende uma biografia acabada, e sim um retrato do temperamento, gostos, amizades e dos mundos (exterior e interior) de Paulinho. "Sou contido, né? Minha família toda tem esse temperamento, minha mãe, avó, madrinha, são pessoas introvertidas. Eu era muito tímido e para romper com isso foi difícil. Veja, vou completar, ano que vem, 40 anos como músico, mas se dependesse do meu temperamento, não teria feito esse tipo de coisa!", revela, rindo, o sambista.

O filme é um retrato simples, mas poético do dia-a-dia de Paulinho. Ele fala de suas influências, bate um papo com os filhos - cinco moças e dois rapazes - , dança com a mulher, Lila, passeia pelo Centro do Rio, joga sinuca e canta, canta e toca muito. Paulinho narra suas andanças pela Cidade Maravilhosa, recriadas no documentário: "Desde o final dos anos 60 sempre andei muito pelo Centro, principalmente ali na Saara (movimentado centro comercial popular). Ia muito ao (loja) Palácio das Ferramentas, na rua Buenos Aires, na Ferragens Pinho... Ou então só andava, tomava um caldo de cana, almoçava no Bar Luiz (tradicional restaurante do Centro). Chegava a fazer uma relação dos lugares que queria visitar."

Adentrando a intimidade caseira de Paulinho, conhecemos um lado um tanto inesperado do cantor: suas habilidades manuais. Aficcionado por carros antigos e mecânica, o compositor também é marceneiro amador. O trabalho funciona como um retiro para o sambista. "(Na oficina) eu ouço, mas não faço música. Ligo o rádio ou coloco os discos que recebo, que são muitos. A marcenaria funciona como um recolhimento, já que não sei ficar parado. Pensar mesmo, só depois de 1h da manhã!", revela ele. A paixão por "destrinchar" automóveis rende momentos divertidos na tela. "Os carros ficam num terreno na Barra, num lugar 'secreto'. Tem muito tempo que nao vou lá, onde ficava meu barracão de marcenaria; hoje as ferramentas ficam na minha própria casa. Não mexo mais nos carros, tem um mecânico que vai me ajudar a recuperá-los...", fala Paulinho.

Os rituais cotidianos do portelense servem como terapia, alívio de tensões que não aparecem sob o semblante sempre tranqüilo. "Existem problemas paralelos à música e a própria forma de fazê-la, que nem sempre sai como você quer", discorre Paulinho. "Tem períodos em que nem quero saber e também passo semanas sem tocar no instrumento. Tem pessoas que se dedicam exclusivamente à música, eu respeito, mas não sou assim. Não pense que compor é um fluir natural!", conta o sambista.

Há em Meu Tempo É Hoje muita música, naturalmente. "Trabalhei um pouco no repertório, mas houve sugestões de todos para escolher as músicas que marcaram muito e as de sucesso", fala Paulinho. 14 Anos, Dança da Solidão, Carinhoso, Argumento, Coisas do Mundo, Minha Nêga (essa a preferida do compositor), Sinal Fechado e Um Sarau para Raphael são algumas das músicas do filme, que em breve estarão no CD da trilha. Entre alguns dos parceiros e amigos que participam do filme, estão Marisa Monte, Zeca Pagodinho, Elton Medeiros, Velha Guarda da Portela, Conjunto Época de Ouro, Marina e muito outros. "Relacionei uma série de pessoas que têm ligação com minha vida, mas infelizmente não deu para convidar todos que conheço e gosto!", lamenta o cantor.

Algumas cenas que foram rodadas e não couberam na montagem final serão resgatadas para o DVD, que deve sair nos próximos meses. "Teve uma seqüência em que eu aparecia dirigindo um automóvel pela cidade, como se fosse um momento de reflexão, com voz em off. Não entrou nenhuma cena desse dia!`Puxa, senti falta disso', falei para Izabel. E ela disse que foi uma luta para editar, porque tinha pena de cortar as coisas...", revela o cantor.

O documentário sobre Paulinho da Viola vem sendo gestado há alguns anos, e originalmente seria dirigido por João Moreira Salles. O sambista conta: "Meu primeiro papo foi com Zuenir (Ventura). Ele disse que João Salles queria falar comigo porque tinha a idéia de fazer um documentário sobre mim. Nós marcamos esse encontro, topei, mas ainda não tinha nada definido. Depois, veio um outro encontro, com a Izabel, e conversamos sobre nossas preferências, criando uma maior aproximação. Lá pelas tantas surgiu o papo da relação da música com o tempo, de forma natural. "

E é justamente sobre a relação de Paulinho com o tempo e seus sentimentos correlatos - a saudade, a nostalgia, o pensar no futuro e no passado - que corre o roteiro da fita. Na tela, o portelense chega a afirmar que não vive no passado, e sim o passado é que vive nele. Afirmação notável para quem compôs tantas letras de cunho (aparentemente) saudosista, falando sobre a passagem do tempo.

"É um sentimento meu em relação a coisas do passado. Sempre falo que não sinto saudade. Para mim vale o que está no presente. É difícil de traduzir, como se o passado fosse vivo em mim. Mas tudo que vivi faz parte de uma única vida, é uma coisa só. A saudade anula a vida e, quando digo isso, pode até ser uma certa pretensão. Mas veja bem: a perda de uma pessoa, o que você sente em relação à ela, é natural; mas não é isso de que eu estou falando. É outra coisa, aquilo dos momentos vividos, que você guarda como se tivesse que voltar exatamente como era, o saudosismo. Isso que não é bom e eu não carrego comigo", deslinda Paulinho. Está falado.