Tom Zé no som, na TV e na estante

O baiano lança livro, CD e DVD ao mesmo tempo, revendo seu passado e olhando para o mundo contemporâneo

Marco Antonio Barbosa
28/11/2003
Inquieto desde sempre, mas em crescente evidência desde seu (re)descobrimento no começo dos anos 90, Tom Zé não se conformou em lançar "apenas" um disco em 2003. O que era para ser o disco-seqüência de Jogos de Armar, de 1999 (seu último álbum de inéditas) acabou se convertendo num ambicioso pacote de CD, DVD e livro. Tudo provando a multiplicidade e a profusão produtivas do baiano. Cada um dos itens - disco (Imprensa Cantada 2003), DVD (Jogos de Armar) e livro (Tropicalista Lenta Luta) - captura um determinado viés da criatividade de Tom Zé, ou até mesmo fases bem específicas de sua carreira.

Possivelmente, o item mais esperado é o livro Tropicalista Lenta Luta (Publifolha), no qual Tom Zé - o primo pobre da Tropicália, que lutou por anos contra a pecha de maldito - conta sua história pessoal dentro do movimento que mudou a cara da MPB no fim dos anos 60. "Demorei a escrever esse livro porque nunca quis fazer parte dessa arenga intelectual sobre o tropicalismo", afirma o baiano, que precisou ser "convencido" a afinal pôr no papel suas experiências. Desde o título, o livro pode trair um tanto de ressentimento do compositor em relação à hegemonia que seus contemporâneos Gil, Caetano, Gal e Bethânia detêm na mídia há quase 40 anos. "Eu só não queria ser humilhado, não acho que havia necessidade de ficar falando do passado. Já tem tanta coisa escrita sobre isso, não é?", afirmou recentemente Tom Zé. “O livro, eu fiz para os jovens que me acompanham terem também um jeito de pensar com as dificuldades, as deficiências que eu vivi", relata o baiano.

Sem muita preocupação didática ou objetividade, o escritor-cantor vai relacionando momentos marcantes de sua formação pessoal, a crucial passagem pela Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (onde estudou com Hans Joachin Koellreutter, influência fundamental para a construção de suas "descanções" - o termo é do próprio Tom Zé) e a eclosão do tropicalismo. Sem arrogar a si mesmo o papel de teórico, mas sempre buscando uma visão bem pessoal da Tropicália, apelando a metáforas, aliterações, divagações.

Num trecho, reflete sobre sua relação com a imperfeição, que pode inspirar tanto quanto os acertos: "Entre a infância e o palco de hoje vim aos solavancos, levado pelo tempo e depois pelo espaço. Erros e tropeços. Trop trop que em reiterados e repetidos flashbacks tornaram-se lições. Polições. Um golpe de vista mais geral mostrou que quando todas as dificuldades se agregavam, justamente então, emergia uma aliada. Ela me tomou pelas mãos e me levou a um terreno firme. Ela, com cujo apoio me converterei num profissional: a deficiência." E prossegue: "Quando deixo minha outra coisa, que não quero chamar de maluquice, minha outra coisa entrar no negócio, acabo achando um resultado que é muito melhor do que o correto."

Mas o volume não se limita apenas à parte memorial. Há outros três blocos de textos, sendo o mais interessante deles uma longa entrevista - quase uma mesa-redonda - concedida ao músico Luiz Tatit e ao jornalista Arthur Nestrovski. É aqui onde Tom Zé explica (ou tenta explicar, pelo menos) seu peculiaríssimo método de trabalho, construindo e desconstruindo sons, melodias e harmonias. "Tenho horror à música. Trabalho minhas canções mais como uma linha de montagem", afirmou o compositor. "Engraçado: ninguém poderia imaginar que eu faço [minha música] como quem faz hits. Sempre me digo: agora achei um hit", conta no livro, o que inevitavelmente provoca risadas. Além da entrevista, há um compêndio de artigos escritos por Tom Zé para jornais e revistas e um apêndice com todas as letras de suas canções, inclusive as incluídas no recente Imprensa Cantada 2003.

O disco tem uma unidade temática que pode ser chamada de conceitual. "É como se eu fosse o redator-chefe de um jornal. Esse ano foi muito rico de misérias, desastres, guerras. Foi só prestar atenção nas notícias que apareciam e dirigir esse jornal", fala Tom Zé. Essa abordagem jornalística remete a algumas canções que o compositor apresentou nos últimos anos, como Vaia de Bêbado Não Vale (narrando o episódio em que o público vaiou João Gilberto em um show, em 2001) e Companheiro Bush (inspirada na guerra contra o Iraque movida pelos EUA), ambas presentes no álbum. Essa idéia vem de longa, como narra o baiano: "Tudo começou quando fui cantar no programa Escada para o Sucesso e fiz a musica Rampa Para o Fracasso, uma sátira com manchetes de jornais da época.”

Tudo é pretexto para Tom Zé comentar o imperialismo norte-americano (Desenrock-se), a guerra, mais uma vez (Urgente pela Paz) e assuntos tão díspares quanto a censura (Requerimento à Censura e Sem Saia, Sem Cera, Censura) e automobilismo (Interlagos F1). O álbum também tem regravações, como Dona Divergência (Lupicinio Rodrigues) e Você É o Mel (versão de Augusto do Anjos para Cole Porter), além de releituras de músicas do próprio Tom Zé (São São Paulo). "Foi até bom que cada música tivesse um jeito, como se fosse mesmo a página de um jornal com a personalidade de cada jornalista”, afirma o compositor. Contribuindo para a heterogeneidade sonora, nada menos que oito produtores/arranjadores estão na ficha técnica, entre colaboradores habituais (Paulo Lepetit, Carlos Rennó, Zé Miguel Wisnik, Alê Siqueira, Ruriá Duprat) e novos agregados (Jair Oliveira, João Marcello Bôscoli e Max de Castro).

Já o DVD foi quase uma surpresa para o compositor. "O show (que foi gravado para servir de base ao vídeo) foi ruim. Quando disseram que iriam transformar aquilo num DVD, logo meu primeiro DVD, achei má idéia. Mas acabou ficando ótimo, uma coisa emocionante", conta Tom Zé. Gravado em 2000, no espetáculo de lançamento de Jogos de Armar (em São Paulo), o registro mostra o compositor promovendo uma farra no palco, em meio a um cenário complexo (que inclui blocos de armar infantis em tamanho gigante e figurinos como um macacão de plástico para o cantor). O destaque vai para a performance dos bizarros instromzémentos, feitos a partir de enceradeiras, aspiradores de pó e máquinas de escrever e ideais para interpretar as descanções de seu repertório. Além das cenas no palco, o disco traz momentos de bastidores, um making-of da complicada montagem do cenário e depoimentos em primeira pessoa de Tom Zé - alguns deles prenunciando temas desenvolvidos em Tropicalista Lenta Luta.