Trio Mocotó: samba-rock de volta para o futuro

Legendário grupo lança seu primeiro álbum em 26 anos e mostra que está com seu suingue intacto

Marco Antonio Barbosa
17/09/2001
Foram eles mesmos quem insistiram em chamar de Samba Rock o álbum que marcou seu retorno aos estúdios após 26 anos. Assim, não se pode culpar ninguém além do próprio Trio Mocotó por restringir seu legado ao suingante ritmo que eles mesmos ajudaram a cunhar, junto a Jorge Ben, nos idos de 1968. Samba Rock ouvir 30s (YBrazil?), mais do que um simples disco, é a profissão de fé de Fritz (voz e cuíca), Nereu (pandeiro e vocais) e João Parahyba (timba e outras percussões), seu passaporte para um lugar cativo na história da MPB e - não se pode esquecer - a senha para que os três reassumam a dianteira na atual onda do samba-rock que já tomou conta de São Paulo. No disco, eles mostram que o tempo simplesmente não passou, no quarto de século em que o Brasil ficou sem ouví-los. E confirmam a lucidez que só a malandragem pode dar, direcionando sua música para a atualidade - sem perder o rebolado. O fato é que no novo álbum pode-se perceber a criatividade em eterna ebulição de um grupo fundamental, capazes de uma síntese instintiva e maliciosa entre as negritudes brasileira (sambística) e estrangeira (pop, suingada).

"Em 1998 decidimos nos reunir novamente, quando percebemos que o samba-rock era um sucesso mundial. Na Europa só querem saber disso. Os DJs ficam loucos - dizem que temos muito groove. Mas o que chamam hoje de groove nós chamávamos de suingue", fala João Parahyba, comentando sobre a reunificação do Trio. "Na verdade, em 1994 algumas rádios de São Paulo começaram a tocar Não Adianta (faixa de 1975 do grupo), e eu fiquei naquela: 'mas ué...?' Fui descobrir que era de um disco nosso que só tinha saído na Europa, e que todo mundo estava sampleando. Já tem uma fila de DJs, brasileiros e estrangeiros, querendo remixar as músicas do disco novo", continua Parahyba.

Samba Rock, o disco, é como se fosse uma aula dada por um legendário professor veterano a uma platéia de alunos (Clube do Balanço, Seu Jorge, Simoninha, Paula Lima - enfim, a nova moçada do suingue) ávida de conhecimento. Com a mesmíssima classe de antes, Fritz, Nereu e Parahyba descascam grooves mais do que sólidos, caprichando no balanço que faz babar os gringos - e a mauriçada paulistana da Vila Madalena também. "É o nosso estilo, fomos nós que lançamos", define João. "Queríamos fazer um disco mantendo a energia e a alegria do nosso som antigo, misturando coisas de música negra americana - jazz, blues - mas com muito suingue. Era importante também que nossa formação básica - pandeiro, timba e cuíca - retornasse. Pô, você ouve um disco de samba hoje e não ouve mais a cuíca...", fala Parahyba. Do balanço mais hard (Kriola, Samba Sambaby, Nereu Nereu, Kibe Cru) à pura malemolência sem pressa (Águas de Março, Mocotó Beat), ficou tudo no esquema.

Como se o bate-bola entre os três estivesse conservado em formol, 26 anos depois de desativado. "Fui trabalhar na área têxtil", diz João, tentando camuflar seu parentesco com a famosa fábrica de cobertores Parahyba. O resto do trio seguiu na música do jeito que pôde. Primeiro, lançaram, sem João, o álbum Trio Mocotó ouvir 30s , em 1975. Depois, o agora duo se separou. "O Fritz foi estudar. Aprendeu sax tenor, trompete... e acabou virando cantor de barzinho, fazendo happy hour. Nereu caiu no samba, foi produzir grupos de pagode." O envolvimento de João com os negócios da família durou cinco anos, de 1975 a 1980. "Fui fazer música instrumental, sempre na percussão", conta ele. A grande virada deu-se já nos anos 90, quando Parahyba conheceu o produtor croata Mitar Subotic - o popular Suba, que instalou-se em São Paulo e logo se tornou ponto turístico de quem quer que fosse do pop nacional que estivesse interessado em música eletrônica.

Nunca é demais lembrar que Samba Rock é apenas o quarto álbum próprio da carreira do Trio, iniciada em 1967, na boate Jogral, em São Paulo. Reunido inicialmente sob a égide do jazz ("O samba-rock veio da bossa jazz", lembra João) os três ficaram famosos ao acompanhar Jorge Ben, em 1968 - no Festival Internacional da Canção (defendendo Charles Anjo 45) e no LP homônimo daquele ano ouvir 30s. Pronto, estava criado o samba-rock. Pelo qual Ben levou grande parte da fama, mas que não existiria sem o balanço diferente do Trio Mocotó. "Fazíamos um suingue com qualidade musical. Era uma modernização do samba. Sentíamos que éramos meio vanguarda! A gente queria fazer algo como um tropical jazz, mas acabou virando o suingue. Daí veio todo mundo na nossa cola", relembra João Parahyba. Ainda que ele não diga quem é esse "todo mundo", dá para supor: Simonal, Marku Ribas, Bebeto, Luiz Vagner, e o próprio Ben, mimetizando-se eternamente.

Depois das colaborações com Ben, vieram canjas com Vinícius de Morais & Toquinho, Chico Buarque e enfim os álbuns "oficiais": Muita Zorra! (71) e Trio Mocotó ouvir 30s (73). Mas nem tudo era folia no país do carnaval. "Naquela época, a música de protesto se sobressaía. E quem não seguia aquele estilo acabava prejudicado. Nossa onda sempre foi cantar as belezas do Brasil, a alegria. Para nós, era importante falar daquelas coisas que muitos achavam bobagem. Todo mundo fazendo letra contra tudo e nós ali, falando de praia, mulher...", diz Parahyba. A isso, o percussionista credita também a notória "derrubada" que alijou da mídia ícones do suingue brasileiro como Wilson Simonal e Bebeto. "A black music brasileira foi afastada da elite. O próprio Jorge Ben sofreu com isso. O Trio Mocotó também; mas conseguimos um pouco mais de credibilidade quando tocamos com o Chico Buarque (no disco Construção ouvir 30s)."

O ocaso do suingue também pode ter sido culpa da discothèque. João Parahyba arrisca uma análise: "Fomos engolidos pela febre da discoteca. No começo dos anos 70 tinha música ao vivo em todos os lugares, e eram grandes bandas tocando - Tamba Trio, Banda Black Rio, todo mundo fazendo música para dançar ao vivo. Daí chegou a discoteca, tudo mecânico, não precisava mais de bandas... o suingue saiu de moda. Tanto saiu que quando voltamos a tocar, ninguém mais tinha a mínima referência sobre o Trio Mocotó. Achavam que éramos um grupo de forró..." Apesar disso, o músico ressalta: "Pode ter saído de moda, mas nunca acabou. Na periferia, os bailes continuaram e ainda continuam, só que a mídia não nota."

Em 1998, passada a mágoa com o mercado e constatada a louca demanda por samba-rock, João, Nereu e Fritz reagruparam-se. "Queríamos liberdade total para trabalhar. Procuramos a YBrazil? por indicações, e sabíamos que era uma gravadora dirigida por um músico (Maurício Tagliaferri, que produziu o álbum)", fala Parahyba. As experimentações com Suba também teriam espaço no disco. "Aprendi muita coisa com ele, em termos de tecnologia e de produção para pista de dança também", narra o percussionista. "Se ele não tivesse morrido (o produtor faleceu em 1999), ele mesmo teria produzido nosso disco. Mas fizemos questão de agrupar tudo: os sons eletrônicos, usados de leve, com o resgate de instrumentos antigos, como os Moogs, os teclados velhos. Os violões tocados no disco têm quase 40 anos de idade!" Aproveitando o tema, Parahyba conta uma anedota. "O (produtor) Mario Caldato, que já conhecia o nosso som, chegou para nós quando estávamos para entrar em estúdio e disse: 'vocês tem que fazer um disco vintage (à moda antiga), só com equipamento velho, todo mundo tocando ao vivo no estúdio...' E eu disse: mas isso é que é vintage?! Então nós sempre fomos, porque sempre gravamos desse jeito..."

O Trio se acha muito a vontade para puxar o hoje lotado bonde do samba-rock. "É ótimo ver a garotada bebendo no som que ajudamos a valorizar. Quanto mais gente tocando e dançando, melhor. É bom pois recupera uma boa música popular, que o domínio do sertanejo e do pagode escondeu. Esse desfile de terno de grife que é o pagode é chato", diz João. E conjugando o som do passado com uma atitude progressista, Parahyba garante que o Trio Mocotó agora não é apenas um grupo, e sim um "projeto" com várias ambições. "Nosso álbum sai em outubro na Europa - aliás, estamos recebendo mais encomendas do exterior do que do Brasil - e no ano que vem nos EUA. Vamos gravar um clipe e produzir um disco de remixes dançantes das músicas do Samba Rock. É para traduzir a energia antiga em uma linguagem moderna", conta Parahyba. E quem foi mesmo que disse, nos anos 80, que "Na verdade acaba sendo tudo igual / pois quem suingue é uma linguagem universal"?