Um Bis para as vozes da era de ouro do rádio

Dyrcinha Batista, Isaura Garcia, Ivon Curi, Augusto Calheiros, Carmen Costa e outros lendários cantores, esquecidos pelas gravadoras, reaparecem em série de compilações duplas

Rodrigo Faour
04/04/2001
Quem gosta mesmo de MPB vai ter que coçar o bolso, não tem jeito. Vai ter que gastar entre R$ 250 e R$ 375 para comprar os 25 CDs da Série Bis - Cantores do Rádio que a EMI acaba de lançar. São coletâneas duplas que enfocam o melhor dos cantores que engordaram a conta bancária das velhas Odeon e Copacabana entre os anos 30 e o começo dos 60, época em que o rádio era o principal veículo de comunicação de massa e que as pessoas conheciam primeiro a voz dos intérpretes e depois a sua figura. Época dos discos de 78 rotações por minuto e dos primórdios dos LP, com gravações em no máximo quatro canais.

Apesar da falta de capas mais criativas e de encartes explicativos, a série tem um grande mérito, que é o de recuperar em formato digital 28 canções representativas de cada um desses cantores - alguns deles, nomes de suma importância para a música brasileira de todos os tempos. Graças à negligência da gravadora, quase todo esse material que sai agora em Bis - Cantores do Rádio estava inédito em CD. Nem mesmo o sucesso do musical Somos Irmãs, sobre a vida das irmãs Linda e Dyrcinha Batista, motivou a gravadora a se sacudir e lançar algo das cantoras no mercado. Sendo assim, pelo menos Dyrcinha ganhou um CD ouvir 30s, com delícias atemporais como as carnavalescas Periquitinho Verde, Upa! Upa! (Meu Trolinho), Oh! Tirolesa, a engraçadinha La Vie en Samba, a envolvente Estranho Amor ou a junina O Sanfoneiro Só Tocava Isso - música que é sucesso até hoje em qualquer festa junina que se preze.

Divas para todos os gostos
Devoradores de divas, preparem-se! Graças à Bis, finalmente sai uma coletânea de Isaura Garcia ouvir 30s, simplesmente a primeira cantora paulista a ganhar expressão nacional. Será possível ouvir raridades como o samba-bossa Questão de Moral, as sofisticadas Foi a Noite e Água de Beber ou os embates femininos de Duas Mulheres e um Homem e E Daí?. Já a voz nada impostada de Carmen Costa poderá ser conferida tanto em seus sambas-canções clássicos (Quase, Eu Sou a Outra) como em pérolas hoje obscuras, da estirpe de A Morena Sou Eu, ou então em duetos raríssimos com seu primeiro parceiro, Henricão (Onde Está o Dinheiro, gravada em 1939).

Ângela Maria e Elizeth Cardoso têm seus principais hits revistos em seus CDs da Bis, sem grandes novidades. O de Marlene, por sua vez, compreende suas gravações feitas entre o final dos anos 50 e os tempos de cantora engajada (anos 70), sempre com bom gosto de repertório. Relíquias mil também estão nos CDs de Hebe Camargo (muitos hoje nem sabem que ela foi cantora!), Dalva de Andrade (seguidora de Dalva de Oliveira, que lançou o sucesso Serenata Suburbana em 60 e pouco depois afastou-se do meio musical, devido à surdez) e Morgana (que veio em cima da linha de Maysa). E já que falamos nela, a eterna Maysa também ganhou um CD com ótima seleção de repertório, repleto de fossas, bossas e sambalanços.

Vozeirões raros
Para quem é mais chegado às vozes masculinas, muita atenção porque o escrete é nota dez. Há desde os pioneiríssimos e já bastante reeditados Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Silvio Caldas até cantores menos lembrados como Augusto Calheiros. Este começou sua carreira por volta de 1928. Pertencia ao grupo Turunas da Mauricéia, conjunto típico do interior de Pernambuco. Com o sucesso obtido no Rio de Janeiro, Augusto - que era o melhor de todos do grupo - seguiu carreira solo com grande sucesso. O Patativa do Norte, como era chamado, é revivido nessa coletânea com Chuá, Chuá, Revendo o Passado, Mané Fogueteiro, entre outras.

Gastão Formenti, que já cantava na virada dos anos 20 para os 30, é outro pioneiro meio esquecido enfim resgatado. Ele começou a gravar nos primeiros discos da série eletromagnética e logo ganhou popularidade graças à voz forte e agradável de tenor, quase barítono. Seu repertório era bom, destacando-se Lua Malvada e Adeus Eulina. Vale a pena conhecer essas e outras músicas que ficaram perdidas no tempo.

De uma geração posterior, Gilberto Alves surge com sua voz aguda no fim dos anos 30, com repertório basicamente romântico, de valsas e serestas (na linha de Carlos Galhardo), mas, como todo artista da época, também com boa fluência nos sambas e músicas de carnaval - vale conferir Bibelot de Cristal ou Uma Grande Dor Não se Esquece. Nos anos 40, surge Roberto Silva, ótimo tanto nos sambas - como bom seguidor de Cyro Monteiro - como nas valsas. Este é um dos únicos artistas que a EMI vem tratando bem ultimamente, tendo relançado a série de quatro LPs Descendo o Morro, além da coletânea Raízes do Samba.

Para completar, dos cantores que alcançaram boa popularidade nos anos 50, há o irresistível Ivon Curi, que regravou vários de seus sucessos na Odeon. Com muito humor e uma voz de veludo, ele arrasou com Farinhada, Arrebita, O Xote das Meninas e com a pérola kitsch O Retrato de Maria (ainda que as gravações originais desses sucessos tenham sido efetuadas por Ivon na RCA Victor). Fecham a coleção CDs não menos raros do sofisticado Tito Madi ouvir 30s e do romântico de linhagem mais popular Alcides Gerardi. Ao lado do paulista Francisco Egydio e do carioca Carlos Augusto (lançador de Negue), os dois estavam totalmente esquecidos pelas gravadoras.

A série Bis - Cantores do Rádio também preparou duas compilações com intérpretes diversos - de Aracy de Almeida a Odete Amaral - que não ganharam CDs individuais. A EMI só poderia ser menos displicente na ficha técnica. Pelo menos os anos das gravações poderiam ser revisados, para evitar os infinitos erros grafados no rodapé do pífio encarte de cada CD. De qualquer forma, há que se preparar o bolso, porque a coleção é quentíssima.