Um dia após o outro com os Racionais MCs

O mais importante grupo de rap do Brasil lança, afinal, seu esperadíssimo álbum duplo; leia entrevista aqui

Filipe Quintans
24/07/2002
Foram quatro anos de espera. O lançamento é um dos mais aguardados do ano: Nada Como um Dia Após o Outro ouvir 30s, o novo disco dos "pontas-de-lança" do rap nacional, os Racionais Mc's. Muito desse tão esperado retorno se deve ao sucesso estrondoso de Sobrevivendo no Inferno ouvir 30s, disco lançado em 1998, detentor de uma marca quase insuperável até o lançamento do novo. Produzido e distribuído em esquema independente, Sobrevivendo... bateu a marca de um milhão de cópias, incríveis para números de mercado. Igualmente independente, o CD duplo Nada Como um Dia Após o Outro, saiu para as lojas com tiragem inicial de 100 mil cópias.

Elogiados, tratados como "grande sensação", os Racionais recusam os rótulos. Mantêm-se envoltos na própria aura, evitando maiores alardes através da mídia. Preferem viver na própria realidade que os criou e que os inspira. Não estão com isso segregando: estão apenas falando de segregação. Em entrevista a Cliquemusic, o DJ do grupo, KLJay, quebra a rotina de evitar a exposição pública do grupo e fala do processo de produção do disco, do tratamento dado aos Racionais por parte do mercado, do status de maior expoente do rap nacional, de eleições e do País.

Cliquemusic: Mexia com vocês a expectativa do público por um novo CD dos Racionais? O disco foi cercado de boatos...
KL JAY
: A gente sempre se preocupou com a qualidade, para que as letras estivessem de acordo com nosso dia-a-dia e que as músicas fossem bem produzidas. O disco do Racionais Mc's é como um livro: tem capa, introdução, meio e fim e isso demora para ser concluído. Também levamos algum tempo para sair da Sony, dar fim ao contrato que tínhamos para distribuição de nosso CD. Isso fez com que o CD demorasse para sair. Além disso, o estúdio é caro, a produção de um CD como este custa muito. Então entrou o ... Ao vivo para cobrir uma parte de dívida com a Sony. Já o negócio da música Vida Loka foi interessante. Fizemos um show com o Lost Boyz (grupo de rap americano), no Anhembi, e alguém gravou e vendeu cópias piratas desse show em CD. Começou então a especulação, as pessoas começaram a dizer que o novo CD dos Racionais Mc's iria se chamar Vida Loka, etc. Isso foi até bom, aqueceu o mercado e a expectativa das pessoas. Nada como um dia após o outro e está tudo certo. O grupo sempre optou por levantar a bandeira da luta contra o racismo, a exclusão social e relatar o dia-a-dia da periferia.

Depois de tanto tempo, ainda existe uma pressão para que o Racionais sempre falem desses temas?
Eu não escrevo as letras, mas tenho minha visão. Os problemas estão aí e a cada dia se agravam mais. Nós somos quatro caras, pretos, pobres, de periferia e sabemos que os problemas estão aí. Só deixaremos de falar disso quando a periferia acabar, quando a distribuição de renda for justa, quando a criminalidade e desemprego deixarem de existir, quando o tráfico de drogas acabar. Falamos das mesmas coisas, porque elas continuam acontecendo, não existe uma cobrança do público, é apenas a nossa realidade. Infelizmente, o Brasil nega sua realidade, através das novelas, do presidente, dos governadores, da música. O Brasil quer negar que existe uma população maioritariamente preta e que a miséria é muito grande.

Vocês conseguem medir o impacto da música do Racionais Mc's sobre as pessoas e sobre o mercado?
Claro que causa um grande impacto. Música é revolução. Quando você escuta o Mano Brown falar: "Fazer o que é assim/vida louca cabulosa/o cheiro é de pólvora e eu prefiro rosas" (trecho de V.L. Parte II do novo CD), você pensa: o cara fala do crime, mas ele quer a paz. Ele quer um mundo melhor. Isso causa impacto. O rap é um conjunto - ouve-se a letra, o som, a levada, a impostação de voz do cara. Nós trilhamos esse caminho, por isso causa impacto e é respeitado.

Além dos jovens de periferia, uma parte da classe artística brasileira gosta da música do Racionais Mc's. Que efeito isso causa em vocês?
A gente não liga para isso, não somos vaidosos a esse ponto. Mantemos os pés no chão. Somos o Racionais Mc's, sabemos que temos um talento, mas não nos entendemos como artistas que devem estar no meio da mídia, que têm que andar com segurança, e se vestir da forma tal. A gente se encaixa no modelo "preto, periferia, discriminado, excluído". Sabemos que temos um talento e muita idéia para trocar. Muitos músicos também usam o rap e o Racionais Mc's para se manter na mídia. É interessante falar que gosta de rap, de Racionais. Está na moda.

Como se deu o processo de produção de Nada Como um Dia Após o Outro? Como vocês trabalharam juntos no CD?
Parece uma coisa de Deus. Somos diferentes e ao mesmo tempo concordamos e discordamos. Eu preciso do (Mano) Brown, que precisa do (Ice) Blue, que precisa do Edi Rock e assim por diante. Ao mesmo tempo em que somos quatro caras, com comportamentos e atitudes diferentes, combinamos no som, na ideologia. Muita gente especula, fala que o grupo vai acabar. Isso é uma grande mentira, estamos juntos, estamos aprendendo um com o outro. Talvez acabe um dia, talvez seja eterno. É importante ressaltar que temos os pés no chão. Vender 500 mil cópias, um milhão e a crítica elogiar, isso não muda nada, somos ainda quatro caras pretos que querem mudar alguma coisa, e por isso conquistamos o respeito do povo. Cada um faz suas letras e também a produção e vamos nos falando, um mostrando para o outro o que está trabalhando. Cada um tem o seu jeito de produzir e aos poucos vamos montando o trabalho, todos colaborando com os parceiros. Neste processo levamos cerca de um ano entre produção e gravação.

Por que Racionais preferem gravar independente, não fazendo contratos com grandes gravadoras?
O rap é independente. O rap usa a linguagem do povo, fala da realidade em que vivemos. Podemos ter uma gravadora, logo somos patrões de nosso trabalho. O rap tem auto-gestão e é original. A distribuição independente dentro do rap está crescendo, porque as grandes distribuidoras não conseguem ir até onde o rap deve chegar. Elas colocam o disco nos grandes atacadistas e quem quiser compra. Só que tem um cara lá no fundão do Brasil que não pode comprar 100 CDs, só pode comprar 10. É nessa lacuna que as pequenas distribuidoras entram. O Brasil é muito grande. As grandes gravadoras e distribuidoras querem levar o CD para quem tem dinheiro, não para que não tem acesso ou não pode pagar. O rap consegue isso, porque prega isso, prega a independência, vende para o povo. Tem um monte de pequenas distribuidoras cobrindo este espaço, como a Zâmbia que nos distribui.

Daí sugerir o preço do CD na capa, talvez evitando a pirataria...

Nós diminuímos o nosso lucro, para levar o CD para mais pessoas e para combater os piratas. Eu sou contra a pirataria, contra MP3, contra música na Internet. Eu sou dono de gravadora (KL Jay é sócio do rapper Xis na gravadora 4P), eu sei como é trabalhoso escrever a música, produzir, alugar o estúdio, pagar a prensagem e tudo mais. Mas com a pirataria chega-se também a um equilíbrio, no nosso caso. Ela é um mal necessário, por que mesmo sugerindo o nosso CD, tem gente que ganha R$ 50, R$ 100 por mês e se ele puder pagar R$ 10 num pirata, vai fazê-lo, porque quer o CD, gosta da música. A pirataria acaba equilibrando um pouco o mercado, fazendo com CD chegue a mais pessoas. O cara que prensa 200 mil (CDs) piratas é um safado, que ganha muito dinheiro, mas o cara que vende na periferia, que tem filhos para criar, não ganha muito.

E as eleições deste ano?
A mensagem do Racionais sempre foi política, sempre lutamos contra o racismo, a violência e a exclusão, mas sempre falamos de política. Partidariamente nos identificamos com o PT, mas não estamos falando para votar no Lula. Se o Lula conseguisse falar, como os Racionais, na linguagem do povo, estava com 80% dos votos garantidos. Mas ele vai dar entrevista no Jô (Soares), cruza as pernas, vai de social, faz acordo com a burguesia. Não que não deva fazer, deve olhar para todos, mas ficar a favor da minoria, mesmo que esta seja controlada pela maioria. Ele vai ganhar se for pelo povo. O trabalhador quer o Lula de camiseta, de calça jeans, metendo a boca. O povo observa suas atitudes e quer gente como a gente no poder.

Com todo esse clima de guerra em que vivemos, os casos do PCC, de Tim Lopes e tantos outros, como você vê toda essa violência?
O País não dá emprego, não distribui a renda de uma maneira justa, as novelas mostram só os brancos tomando café da manhã, com suco de laranja, queijo e presunto, um monte de carros importados na rua, e os carros nacionais cada vez mais caros e o povão nas periferias, na favela. Isso é difícil. O crime é a conseqüência, ele usa a vida das pessoas, sua fraqueza. O menino da favela vê tudo isso, assiste à Globo, vê só o luxo e quando ele tem a oportunidade de ganhar R$ 100 por semana no tráfico, ele pega o serviço. Os caras empurram isso para a gente. É um plano diabólico, é como se dissessem assim: "Você vale o que tem, uma roupa boa, uma imagem". Poucas pessoas conseguem ver isso, ver a realidade e quando enxerga, já está envolvido.

A imprensa para vocês é aliada ou inimiga?
Se o Racionais fizerem merda, a imprensa cai matando, se continuar humilde, a imprensa elogia. A imprensa precisa divulgar alguma coisa, é o papel dela. Mas eu também acho que a maioria da imprensa joga sujo, apesar de alguns profissionais bons. A Globo, por exemplo, é uma mentira e disfarça essa mentira numa revista como a Marie Claire, que é uma mídia culta, com boa informação. Mas quando pensamos em Globo, logo lembramos da TV e esta é muito ruim, assim como o SBT. É sensacionalista, usa a fraqueza do povo para manter audiência. Mas eles estão assinando um boletim de ocorrência com Deus. A Globo é responsável também pela burrice do povo brasileiro. Você vê as mulheres que não têm dinheiro, frustradas, vendo as novelas com uma realidade completamente oposta. Tem coisa que bate, coisa de sentimento de relacionamento, mas não é só disso que se vive, que se deve ver. A vida não é só isso. A vida é acordar cedo, ir trabalhar, cuidar dos filhos. A TV pega na fraqueza, na sensibilidade, no amor, no coração e a Globo e o SBT fazem isso muito bem, condicionam o povo.