Um inovador sutil mas definitivo

Dono de uma pegada única no violão, Bonfá teve composições definitivas na implantação da sintaxe da bossa nova

Tárik de Souza
12/01/2001
O carioca Luiz Floriano Bonfá nascido em 1922, morava em Santa Cruz na então remota zona oeste do Rio (décadas antes da explosão da Barra da Tijuca). Tinha 12 anos e tomava o trem até a Central onde caminhava até a Lapa e daí para a casa do uruguaio Isaías Sávio, seu professor de violão na subida para Santa Teresa. "A sorte é que ele tinha uma atenção especial com o meu esforço e se recusava a receber, porque eu não teria como pagar a aula semanal", lembrou Bonfá num texto especial para o CD Luiz Bonfá e as Raízes da Bossaamostras de 30s, da Enciclopédia Musical Brasileira da WEA/Continental. O disco garimpava as andanças modernizadoras do violonista que trançou cordas com outro revolucionário, Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto (1915-55) na Rádio Nacional. Ambos seriam mais tarde reunidos em disco pelo produtor Aloysio de Oliveira ouvir 30s. O Bonfá dos primórdios, ainda com o grupo vocal Quitandinha Serenaders, já em 1948 demonstrava seus traços de inconformismo com a MPB vigente, mas foi a partir de 1951 com a gravação da Canção do Vaqueiro e as subseqüentes Sem Esse Céu (1952) e Perdido de Amor (1953) todas por Dick Farney, que Bonfá passou a ser um dos líderes das transformações musicais que resultariam na bossa nova. Seu samba-canção De Cigarro em Cigarro tinha sido registrado sem alarde por outro inovador, Johnny Alf mas foi estourar na voz sombreada de Nora Ney (outra precursora) em 1953amostras de 30s. Lúcio Alves, outro da turma, gravou Entre Nós, em 1952.

No meio da década, um aspirante a músico chamado Antonio Carlos Jobim dispôs-se a carregar o pesado equipamento de amplificação do violão elétrico usado por Bonfá para acompanhá-lo nos shows. Da convivência ("nós estávamos sempre um na casa do outro, era tudo muito espontâneo", descreveu Bonfá no texto) nasceu a parceria que forneceria um sucesso para Ângela Maria (A Chuva Caiu), outro para a posteridade, Correnteza, regravada por Djavanamostras de 30spara novela global O Rei do Gado, de 1997 e um samba-canção, Engano (1953) para outra iniciante renovadora, Doris Monteiro. No 10 polegadas de Bonfá de 1955, um embrião da bossa salta de faixas como Chora Chorão (do próprio Bonfá), Minha Saudade (ainda sem a letra de João Gilberto), ambas com participação pioneira de João Donato (autor da segunda) no acordeon. Saboroso é o ocorrido ao choro O Barbinha Branca, parceria de Bonfá e Jobim também de 1955. O tema instrumental foi simplesmente repaginado para Um Abraço no Bonfá por João Gilbertoamostras de 30s, que o assinou e gravou no clássico LP O Amor, o Sorriso e a Flor, de 1960.

A grande virada na carreira do violonista ocorreria quando ele foi convidado a participar da trilha da versão cinematográfica da peça teatral Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes. Bonfá tinha dois temas instrumentais na cabeça que, letrados pelo cronista Antonio Maria (após uma educada recusa da tarefa por outro cronista, Rubem Braga), transformaram-se respectivamente em Manhã de Carnaval e Samba do Orfeu. O filme e a beleza da primeira canção (o samba também é ótimo) a transformaram num dos maiores sucessos internacionais da bossa nova, catapultado pelo célebre show do movimento no Carnegie Hall, em novembro de 1962. Foi também o passaporte carimbado para uma longa estadia do compositor e violonista nos EUA, onde gravou discos como Black Orpheus Impressionsamostras de 30s, Jacarandáamostras de 30s, Introspectionamostras de 30salém de ter em 1997 um songbook na voz da cantora Ithamara Koorax, Almost in Loveamostras de 30s. No CD há outra parceria dele com Jobim (Amor sem Adeus), além de Almost in Love, gravado pelo rei do rock Elvis Presley para o filme Live a Little, Love a Little, da MGM, em 1968, outro grande sucesso do compositor (só) no exterior, Gentle Rain e Menina Flor, que forma com Mania de Maria o par de contribuições decisivas de Bonfá para a implantação da sintaxe bossa nova.

Sem prender-se à célebre batida de violão cristalizada por João Gilberto, Bonfá sempre teve sua pegada indelével. "Criei o meu estilo fazendo o baixo simultâneo para dar o efeito de dois violões", escreveu ele num de seus últimos depoimentos antes da doença que o imobilizaria. "Absorvi muita coisa da música americana, cheguei a uma sonoridade suave, sem malabarismo, enriquecendo mais os acordes. Quando todo mundo tocava só com a unha, eu já usava a falange. Às vezes juntava as duas coisas e saía outro som. Quando queria mais estridência abria a mão", ensinava o mestre. "Minha execução é praticamente sem ruído. O ‘sibilado’ acontece com quem tem muito calo na mão que fica pesada. Não gosto de tocar com palheta, fica mecânico, só vale para quem quer velocidade", definiu o sutil Bonfá, um inovador que nunca fez alarde de suas revoluções.

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