Um veterano bem vivido

Roberto Paiva conta como lançou Nelson Cavaquinho, por que brigou com Aloysio de Oliveira e como as transformações surgidas na mídia a partir dos anos 50 o prejudicaram

Rodrigo Faour
09/02/2001
Apesar de a partir dos anos 60 ter se sentido "alijado" artisticamente, pois a cena musical virara de cabeça para baixo na MPB, Roberto não tem recalques e elogia muitos artistas que o sucederam. "Adoro composições de Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Esses três estão numa linha espetacular. Acho que Gil e Caetano têm vozes lindíssimas. Também gosto muito do letrista Paulo César Pinheiro", elogia Paiva, que diz que adoraria ter gravado Viagem (de Paulo César e João de Aquino).

Fora esses, ele diz que ouve muito chorinho em casa. "Hoje, sou muito ligado nos chorinhos. De Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho, Joel Nascimento, Camerata Carioca, Radamés Gnattali... até Armandinho, Raphael Rabello e os jovens de hoje. Tem muita gente boa aí gravando chorinho. Fico feliz por isso. Não conheço música, não toco violão porque não sei fazer nada bem com as mãos, mas se tiver um regional comum (bandolim ou cavaquinho e dois violões) e algum músico der uma nota errada eu sei", observa.

Com o advento da televisão, nos anos 50, Paiva - que nunca foi de divulgar muito sua figura em revistas populares, como a Revista do Rádio e Radiolândia - sentiu na pele o poder crescente da imagem do cantor na mídia. "Fiz um programa de TV e um maquiador português que havia na TV Tupi me disse que eu tinha fotografado muito mal e me pediu que eu passasse na sala dele na próxima vez que fosse escalado. Quando Chacrinha me chamou para atuar no seu programa, fui então até ele, que me pintou a cara toda. Fiquei um palhaço completo (risos), com branco de um lado do rosto, de preto do outro... Meus colegas caíram na minha pele. Perguntaram: 'Você vai entrar assim no ar? O auditório vai rir de você...' Mas já estava em cima da hora e tive que entrar. Sabe o que aconteceu? Meu telefone não parou de tocar em casa. Disseram: 'Nossa, Roberto, você está mais moço uns dez anos, como você está bem'. Quer dizer, o maquiador era craque. Sabia dos truques da TV."

Se Todos Fossem Iguais a Você
Outra mudança na tecnologia também prejudicou bastante o cantor. Em 1956, na época da transição do 78 rpm para o LP, Paiva foi convidado por Aloysio de Oliveira, então diretor artístico da Odeon, para gravar a trilha sonora da peça Orfeu da Conceição, que lançava a parceria de Tom Jobim (então um ainda pouco conhecido arranjador e pianista) e Vinicius de Moraes (famoso como poeta e embaixador). Depois de muita insistência para que fosse à casa de Jobim na Rua Nascimento Silva em Ipanema ouvir uns "sambinhas", o cantor foi até lá, gostou das músicas e foi gravá-las. Até aí, tudo bem. O problema é que o formato LP ainda não era popularizado. Assim, pouca gente tomou conhecimento do lançamento e mesmo das próprias gravações, já que Aloysio não quis lançá-las no formato 78 rpm.

"Esse disco do Orfeu me causou um prejuízo inominável", relata Paiva. "O Tom me deu cinco sambas para o disco. Mas o Se Todos Fossem Iguais a Você me chamou a atenção. Eu adorei tanto a música que pedi ao Aloysio para fazer um 78 rpm com ela de um lado e o samba Um Nome de Mulher do outro. Eu tinha um contrato a cumprir na Rádio Record de São Paulo e pedi ao Aloysio que lançasse esse disco o mais rápido possível, porque ia vender centenas de milhares de cópias. Fui para São Paulo e não vi o disco. Ao mesmo tempo, já ia sabendo pelos jornais de outros colegas que já estavam gravando a música. Voltei ao Rio um mês e meio depois e soube que ele não cumpriu a promessa. Fiquei tão furioso que cheguei a pedir rescisão do contrato."

Foto: Nana Vaz
Capa do disco Polêmica
Polêmica e sambas comprados
Outro LP memorável lançado em 1956 por Roberto Paiva (em dupla com o cantor Francisco Egydio) foi Polêmica, com os sambas que Noel Rosa e Wilson Batista fizeram na década de 30, uns como resposta para outros. Coube a Paiva cantar números como Lenço no Pescoço, Mocinho da Vila, Frankstein, Conversa Fiada e Terra de Cego - todas de Batista, que foi seu amigo. "Conheci o Wilson o Café Nice. Era um cara super humilde. Só faltou colocar o colchão no corredor da União Brasileira de Compositores certa vez por falta de dinheiro. Era muito talentoso. Era capaz de criar um samba muito bem feito sobre um assunto que ele mal conhecia, como uma vez quando fez Águia de Haia, em homenagem ao Ruy Barbosa", conta.

Roberto lamenta apenas que, quando o LP já havia se popularizado, nos anos 60, a Odeon tenha proposto refazer o álbum Polêmica com o cantor em duo com Elza Soares. "Não aceitei porque seria ridículo uma mulher cantar um samba que falava em lenço no pescoço e navalha no bolso."

Outro compositor com quem Paiva conviveu muito foi Nelson Cavaquinho. Aliás, ele jura que foi seu lançador, embora não possa provar isso por um motivo muito simples: o samba Podes Crer, gravado por Paiva em 43, foi um dos muitos que Nelson vendeu a outros autores, no caso, Ary Monteiro e Jorge de Castro. "O Nelson vendia samba por 20 mil réis. Me foram oferecidas por ele diversas parcerias. Mas nunca aceitei!", revela o cantor, que chegou a melhorar a letra da segunda parte da música, com a ajuda do letrista Jorge Faraj. "Podes crer que a tua volta era esperada/ Tu erraste e esqueceste que a justiça divina tarda mas vem/ Nesse mundo só se deve praticar o bem/ Sou feliz porque nunca fiz mal a ninguém", canta.

De Minas à Paraíba
Roberto também fez muito sucesso com algumas versões, como o tango Escreve-me (Scrivimi) (48), com o fox É Meu Destino Amar (I'm in the Mood for Love) (50) e até com a adaptação da valsa Vienne Sul Mar, que virou Oh! Minas Gerais, a primeira delas a estourar, em 45. "Pouco depois de lançar o Minas Gerais foi fazer uma excursão a Campina Grande, na Paraíba. Cantei para mais de cinco mil pessoas. E a turma em frente ao palco ficava pedindo por essa música, mas não cantei. Quando o show acabou, o empresário que me contratou me deu uma bronca: 'Poxa, você não atende ao público!' E eu disse: 'Que nada! Quem está pedindo é meia-dúzia de estudantes. Querem que eu cante Minas Gerais no interior da Paraíba por quê? Só pode ser para jogarem ovo em mim'. No dia seguinte, almoçamos juntos e fomos nas lojas de discos, sem me identificar, pois minha figura nunca foi muito conhecida. E eu pedi: 'Tem aí o disco do Roberto Paiva, Un Peu D'Amour (Galho de Acácias)?' - que era o outro lado do 78 rpm. 'Não tem', responderam. Fomos em outras duas e também não tinha. Na hora de sair da terceira, um senhor disse: 'Por curiosidade ontem fui ver o que tinha do outro lado do disco, porque aqui só pedem o lado A, o Minas Gerais. No dia seguinte, claro que cantei o Minas Gerais no show... Vi que era sucesso no Brasil inteiro".

Apesar de não ter conseguido romper com a ditadura estilística dos modismos que se sucederam no país, a partir dos anos 60, que obrigou a boa parte dos cantores veteranos a restringirem seu campo de atuação, Roberto sabe que fez o melhor que pôde na sua época como cantor e está em paz com sua consciência. "Dou graças a Deus de ter chegado aos 80 anos. Fiz tudo que tinha direito de fazer durante a minha vida. Já cheguei a beber dois litros de uísque numa noite, já fui jogador de carteado e jockey clube. Fiz tudo... fui casado 30 anos, tenho um filho jornalista, dono de um jornal. Mesmo tendo ficado viúvo cedo, encontrei uma mulher que veio preencher da maneira mais brilhante possível minha vida, a minha Teresinha. Não sou rico, tenho uma vida razoável, sem ostentação. Sou um sujeito feliz", resume o cantor de voz firme e belíssima dicção - até hoje.

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