Uma biografia como tantas outras

A trajetória de Clementina poderia ter passado em branco se não fosse um encontro determinante - e o Brasil ficaria com uma lacuna em sua história musical

Nana Vaz de Castro
06/02/2001
No libreto que acompanha os CDs da caixa, com texto assinado por Lena Frias, diz-se que é uma comemoração aos 100 anos do nascimento de Clementina. No fundo ninguém sabe ao certo em que ano ela nasceu. 1901, 1902, 1907... impossível precisar. Em seu depoimento gravado pelo Museu da Imagem e do Som, ela diz que nasceu em 1902, informação corroborada no texto da contracapa de seu primeiro disco individual. A certidão de casamento com Albino Correia da Silva, o Pé Grande, marca 1907. Mas o registro de batismo lavrado na Nossa Senhora da Glória reivindica 1901. Não faz tanta diferença. Sabe-se que a mãe da Clementina, Amélia, já nasceu liberta, beneficiada pela Lei do Ventre Livre, e que a avó paterna, conhecida como Tia Mina, veio da África, trazendo consigo a música que mais tarde transmitiria à neta.

Clementina nasceu no município fluminense de Valença, e mudou-se para o Rio com a família com mais ou menos dez anos de idade, indo morar no bairro de Jacarepaguá. Foi provavelmente em Valença que ouviu e aprendeu a maioria dos jongos, corimas e cantos de escravos que mais tarde fariam sua fama. Mas foi em Jacarepaguá que seu talento foi descoberto, primeiro pelo vizinho João Cartolinha, que organizava grupos de crianças para as procissões e festas religiosas, dando a Clementina papel de solista assim que a ouviu cantar. Depois, pelos padres da igreja que freqüentava (foi aluna de escola dirigida por religiosos em esquema de semi-internato, o que lhe deu as bases para se tornar uma misseira convicta por toda a vida).

Da mistura das canções ensinadas pela avó com as músicas religiosas passadas pela mãe (que era zeladora da Igreja de Santo Antônio em Valença) e pelo colégio resultou o sincretismo musical de Clementina. Mas apenas musical. Ainda que se vestisse sempre de branco e cantasse músicas como Embala Eu, em que pede proteção a Mãe Menininha do Gantois, Clementina era católica apostólica romana e misseira devotada. Freqüentava terreiros de candomblé, sim, mas pelo lado puramente musical, para cantar. Diz-se que uma vez se irritou com uma famosa cantora que lhe pediu para que fizesse um "trabalho". Não obstante, tinha o "corpo fechado", e mostrava sem problemas a cicatriz no peito (um lanho feito a faca) obtida no ritual.

Com a morte do pai, a situação financeira da família degringolou, e com cerca de 14 anos Clementina começou a trabalhar como doméstica, lavadeira, passadeira e banqueteira. Mas a amizade com João Cartolinha permaneceu, e acabou por levá-la a Oswaldo Cruz, onde integrou o bloco Come-Mosca, um dos embriões do que mais tarde seria a escola de samba Portela. Foi também da diretoria de outra escola, a Unidos do Riachuelo, mas sua ligação mais profunda com escola de samba foi por tabela. Virou mangueirense depois de casar com Albino Correia da Silva, o Pé Grande, que não foi seu primeiro marido (teve uma filha, Laís, com o gaúcho Olavo dos Santos, em 1923), mas foi sem dúvida o definitivo companheiro, com quem viveu do início dos anos 40 até a morte dele, em 1977, e teve outra filha, Olga.

Estrela por acaso
A biografia de Clementina de Jesus não seria muito diferente de tantas outras, não fosse pelo fatídico encontro com Hermínio, no dia 15 de agosto de 1963, data precisada pelo próprio. Ele, que contava então 28 anos, voltava da praia, passou pela porta do bar Taberna da Glória, e lá viu Clementina, acompanhada (sempre) de Pé Grande e outros amigos, cantando e versando informalmente. O produtor musical ficou fascinado, mas, até mesmo por estar em trajes de banho, não entrou nem conheceu aquela mulher cuja voz e maneira de cantar tanto o impressionaram.

Foi reencontrá-la algum tempo mais tarde, na inauguração do lendário Zicartola, cantando na cozinha, um copo de cerveja na mão. E a perdeu de vista mais uma vez. Em 64, na festa de Nossa Senhora da Glória, mais uma vez, lá estava Clementina, na mesma Taberna (não é a Taberna da Glória que existe hoje em dia, e sim uma outra, que foi demolida há anos por causa das obras do metrô). E desta vez Hermínio foi conhecê-la, e iniciou-se uma relação definitiva na vida dos dois.

A estréia mundial de Clementina nos palcos foi antes do Rosa de Ouro. Em 7 de dezembro de 1964, ela dividiu um espetáculo da série O Menestrel com o violonista clássico Turíbio Santos, no Teatro Jovem (RJ). A série, elaborada por Hermínio, tinha justamente o objetivo de promover recitais metade clássicos, metade populares. Primeiro, Turíbio tocou variações sobre temas de Mozart e prelúdios de Villa-Lobos. Depois, Clementina entrou, assustando e encantando o mundo com sua voz anasalada, acompanhada por César Faria, Elton Medeiros e Paulinho da Viola.

Este último coloca Clementina em sua seleção pessoal de cinco cantoras mais importantes. "Tudo o que se fala sobre a Clementina não tem a dimensão da presença dela. Ouvi-la cantando, sentada, com seu vestido de renda, era algo absolutamente fascinante, difícil de transmitir, de traduzir com palavras. É preciso ouvir o timbre de sua voz. Clementina é única, não dá para comparar. Cantoras como ela, Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, representam a riqueza de um universo negligenciado, ou, mais precisamente, esnobado. O que elas representam faz parte da riqueza da nossa vida, mas às vezes é visto como algo exótico, porque não é compreendido. O fato de gostar, de se sensibilizar, implica aceitar outras coisas, gostar de outras coisas. As pessoas querem se distanciar, colocar essas manifestações em outro patamar, como se não fizessem parte da gente. É como nos olharmos no espelho e acharmos defeitos em nós mesmos, não gostarmos de uma parte de nós mesmos. Clementina representa um aspecto particular da cultura negra no Brasil", diz Paulinho, que teve duas músicas de sua autoria (Na Linha do Mar e Essa Nega Pede Mais) incluídas no disco Marinheiro Só ouvir 30s.

Mais brasileira de 15 em 15 minutos
Clementina conquistou fãs nos redutos mais insuspeitos da música. Do compositor Francisco Mignone a tradicionais críticos de música erudita como Andrade Muricy ou Eurico Nogueira França, passando por Nelson Rodrigues - que disse "(...) Clementina de Jesus, que todas as manhãs acorda mais brasileira (mais brasileira de 15 em 15 minutos)" -, todos se renderam ao furor suave de sua potência vocal, saída crua da garganta, que parecia não passar por filtros do aparelho fonador.

"O que impressiona é a ligação que ela fazia entre a nossa herança africana e uma capacidade musical e vocal extraordinária. Era uma intérprete maravilhosa", diz Turíbio Santos, que a considera uma espécie de Louis Armstrong brasileiro. Seu repertório, em grande parte resgatado por ela mesma da memória das festas religiosas e dos cantos da mãe, era um exemplo academicamente perfeito da força da tradição oral na cultura afro-brasileira. Assim, Clementina passou a ser considerada uma espécie de elo perdido na conexão entre a África e o Brasil.

"Clementina teve uma importância cultural muito grande em termos não só de interpretação mas também de repertório, no início de sua carreira. Ela era mais jongueira e partideira do que sambista. Uma parte do resgate do jongo e do partido-alto deve-se a ela. E do lundu também, na sua essência, bem rústica, como ela cantava. Ela fica na fronteira entre a música popular brasileira e o folclore", diz Elton Medeiros, que acompanhou Clementina durante muitos anos, desde a estréia no Teatro Jovem.



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