Uma colcha de retalhos do tecido urbano

Fernanda Abreu se dedica a pensar sobre as cidades em seu novo disco, não se esquecendo de também levar adiante o seu projeto de samba-funk digital

Silvio Essinger
15/11/2000
Para o lançamento de um disco que se chama Entidade Urbana ouvir 30s, a convocação para a coletiva de imprensa numa casa em Vargem Grande, recanto rural da Zona Oeste do Rio de Janeiro, não deixa de ser um tanto estranha, não é Fernanda Abreu? Mas o empresário da cantora, compositora e dançarina, Jeronymo Machado, se adiantou à pergunta, que estava entalada na garganta dos jornalistas: “Foi para tirar vocês um pouco da cidade.” Com o devido distanciamento estabelecido, ela começou então a falar deste disco conceitual, confluência de várias idéias, vindas de várias fontes, como a sua própria vivência Zona Norte-Zona Sul, conversas com o pai urbanista e a leitura de livros de arquitetura e de romances como As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. O conceito de uma cidade como ser vivo, termos como “tecido urbano” e comparações entre trânsito e sistema circulatório insistiam em não abandonar a sua cabeça. “De repente, todas as músicas que fazia tinham a ver com tema”, conta Fernanda. “Achei que pudesse ficar repetitivo, mas depois vi que era isso mesmo.”

O tema da violência, comum às megalópoles – e ratificado semana passada após bandidos terem baleado o baterista do Rappa, Marcelo Yuka, no Rio – não é exatamente a tônica de Entidade Urbana, explica ela: “Ele é um disco sobre cidades”. Mas, de qualquer forma, não foi possível à cantora, petista declarada, que se considera mais uma repórter do que uma crítica da realidade nacional, escapar da discussão. “Quero educar minha filha para ir para a rua, não para ficar em casa com medo”, diz. A cidade da garota carioca suingue sangue bom é uma mistura de todas as outras – e isso, ela buscou deixar evidente logo na capa, com uma colagem feita pelo marido, Luiz Stein, a partir de 40 fotos suas com diferentes roupas. “Imagino que a roupa da cidade seria todas”, conta.

Num ímpeto de cosmopolitismo, Fernanda resolveu até arriscar uma canção sobre os vizinhos, São Paulo-SP. Segundo ela, a composição nasceu com a idéia de escrever uma letra “meio Caim e Abel” sobre a relação entre o Rio e SP. “O Brasil está sempre representado por São Paulo – é a maior cidade do país, a terceira maior do mundo... São Paulo não dá para entender – é muito, é tudo”, teoriza. Quando foi ver, tinha no papel “um Rio 40 Graus de São Paulo, uma visão totalmente carioca da cidade”. “Os paulistas talvez dêem gargalhadas quando ouvirem”, espera a cantora. Em busca de uma espécie de cor local para a música, ela chamou o DJ Hum, que fez uma colagem de samples de músicas de grupos paulistanos de rap, como Pavilhão 9, Thaíde e DJ Hum, Doctor MCs e até de um brasiliense desgarrado, o Câmbio Negro. “Se existe algo que São Paulo está exportando para o Brasil é o hip hop, mais do que o rock e a MPB”, defende.

Continuação de Da Lata
No departamento sonoro, Entidade Urbana é mais um capítulo da série “samba-funk digital” da cantora, cinco anos depois do clássico álbum Da Lata: “Aquele era até então meu último disco de carreira. Raio X ouvir 30s (de 1997, com remixes) tinha duas faixas novas que nem composições minhas eram (Jack Soul Brasileiro, de Lenine, e o samba É Hoje). Foi um disco no meio dessa história. Com Entidade Urbana retomei do Da Lata, foi uma continuação estética.” A novidade do disco está na maior intimidade da cantora com os programas de processamento de som. “Acho que fui bem mais fundo nesse disco”, conta, que baseia seu processo de composição na busca de uma letra, uma melodia e um bpm – ou seja, o andamento, as batidas-por-minuto. “A canção era boa quando achava um groove bom, depois eu resolvia o resto”, conta.

As músicas, Fernanda levou para o estúdio praticamente prontas. “Foi o disco mais bem resolvido que eu fiz”, gaba-se. Produzido por Chico Neves e Liminha, Entidade foi gravado ao longo de nove meses, “de uma forma quase independente”, que não poderia ter sido feita no esquema normal de gravação com dois produtores tão requisitados. No meio do caminho, a cantora ainda deu a luz a Alice, sua segunda filha – muitas vezes, em dias de gravação, tinha que dar de mamar de três em três horas.

Na primeira música de Entidade Urbana a chegar às rádios, Baile da Pesada, Fernanda e o novo parceiro Rodrigo Maranhão traçam a genealogia do funk no Rio, desde o DJ Big Boy (de cujo programa de rádio, nos anos 70, foi tirado o título). “Quero ouvir o batidão/ quero ouvir a Furacão”, canta ela em certa parte, referindo-se à equipe de som Furacão 2000, cujo dono, Rômulo Costa, tem sido procurado pela polícia sob a acusação de envolvimento com o tráfico de drogas. “Isso [quer dizer, se ele de fato tem algum envolvimento] eu não sei, ninguém sabe”, diz a cantora, descartando inclusive a existência de violência nos bailes funks cariocas. “Cinco anos começou a rolar uma pancadaria nos bailes, mas ela foi reprimida. O que existe é essa tendência de acabar com o funk no Rio, porque tem muito preto e muito pobre”, acusa esta freqüentadora das festas do Disco Voador (em Marechal Hermes), Castelo das Pedras (em Jacarepaguá) e da Mangueira, nas quais, aliás, pensa em gravar o clipe do Baile da Pesada.

Um milhão de amigos
Em Entidade Urbana, mais uma vez Fernanda Abreu exercita um de seus maiores talentos: o de aglutinadora de talentos alheios. Além de velhos companheiros como Fausto Fawcett, Lenine, Liminha, Memê, Fábio Fonseca, Suely Mesquita e Fernando Vidal, ela traz novos como os Rodrigos Maranhão e Campello (parceiro em Sou da Cidade, Roda Que Se Mexe e Meu CEP é o Seu), Lucas Santtana (co-autor de Fatos e Fotos), o DJ Hum, Jamil Joanes (baixista da Black Rio), Gilberto Gil, João Donato (que tocou com Gil e Joanes na Roda – mas também em que disco brasileiro Donato não tocou este ano?) e até a filha Sofia, de oito anos de idade, que contribuiu com uma idéia para Eu Quero Sol.

Era tanta gente fazendo música com Fernanda que duas faixas acabaram ficando de fora do disco: Sun City (feita com o irmão, Felipe) e Rio de Sebastião. Coincidentemente, a cidade recentemente ganhou de Gil e Milton, a música Sebastian. “Mas a minha música também é legal!”, vai avisando a cantora. Na tentativa de encaixar mais pessoas em seu novo projeto, ela teve a idéia de fazer uma revista, em que entraram textos e obras de artes visuais feitas por 50 artistas, entre designers, fotógrafos, músicos e escritores. “Só pessoas ocupadas. E o bom é que todas deram suas colaborações”, comemora.

Os esforços de Fernanda Abreu passam a ser direcionados agora para os dois diferentes shows que tem pela frente. Um, só de sucessos, para o Rock In Rio, em janeiro. Outro para a turnê de lançamento do disco, que começa em março. Ela revela que foi dura a batalha para sair da noite teen (de artistas que sequer conhece) do festival – acabou indo para a que será liderada pelo americano Beck. Ao contrário das bandas de rock que abandonaram o Rock In Rio, ela diz que não tem reclamações quanto aos organizadores. “Por enquanto temos sido bem-tratados. Se o que aconteceu tivesse sido uma questão política, talvez eu saísse também.” Com o disco nas lojas, Fernanda agora encontra tempo para preparar o físico para as coreografias que vai estrear no festival. Depois da gravidez, conta, seu preparo físico ficou “pééééééééssimo!”