Uma história de inovação pouco conhecida

No livro Do Frevo ao Manguebeat, jornalista mostra o quanto Recife esteve à frente do país em termos musicais, desde Capiba até a revolução pop de Chico Science

Silvio Essinger
29/11/2000
Um "compêndio" da história musical do Recife deste século, eis o que nos apresenta o jornalista José Teles, 47 anos de idade, no livro Do Frevo ao Manguebeat (Editora 34), que terá sua festa de lançamento dia 11 próximo, na Galeria Joana D'Arc (na capital pernambucana), com show de Silvério Pessoa, ex-Cascabulho. Quem esperava algo de interesse restrito, é bom se preparar para rever seus conceitos: com bom embasamento histórico, Teles apresenta teses que atestam a enorme - e nem sempre discutida - importância da música da cidade para a do resto do país - e, de certa forma, do resto do mundo também. Afinal, com Chico Science e a Nação Zumbi, o mangue beat ganhou uma grande e rapidíssima projeção internacional, influenciando portugueses (que fundaram em Lisboa o movimento Tejo Beat) e escoceses (que criaram o Bloco Vomit, especializado em tocar sucessos de punk rock com tambores de maracatu), entre outros músicos estrangeiros. Foi um exemplo raro de invenção pop brasileira, que resistiu mesmo à morte de Chico, no carnaval de 97. "O mangue beat não parou mais, não tem volta", conta Teles, ressaltando que a música dos caranguejos com cérebro, com suas parabólicas fincadas na lama, fez os recifenses sentirem orgulho de uma cidade que só costumava aparecer nos noticiários por causa do lixão de Peixinhos.

Capital que até o fim dos anos 60 rivalizava com Rio e São Paulo em termos de importância econômica e cultural, Recife caminhou para o buraco ao longo da ditadura militar - nos anos 90, acabou sendo considerada uma das cinco piores cidades do mundo em condições de vida, pelo Population Crisis Commitee, instituto sediado em Washington. Desse desprestígio, deve-se muito do fato de sua história de pioneirismo musical ter ido para um segundo plano na lembrança do país. A começar pelo frevo, música de grande apelo nacional nos anos 40 e 50, graças a nomes como Capiba, Nelson Ferreira e Claudionor Germano. De origem essencialmente urbana, o estilo está na raiz do carnaval que a Bahia exportou para o país nas últimas décadas. "Esse carnaval em Salvador não existia até o Vassourinhas passar por lá", conta José Teles, referindo-se à apresentação que o bloco de frevo fez nas ruas da capital baiana, em 1951. Foi para fazer algo parecido com aquela contagiante folia pernambucana que Dodô e Osmar acabariam criando o trio elétrico.

Capa do livro
Outras histórias levantadas em Do Frevo ao Manguebeat põem Recife na vanguarda da música brasileira. Os discos de frevo, por exemplo, eram editados pela Rozenblit, gravadora regional fundada por José Rozenblit, que acabou ganhando dimensão nacional, com estúdio e gráfica próprios, filial no Rio e tudo mais. Por ele foram editados também discos de famosos artistas não pernambucanos, como Zé Kéti, Tom Zé, o jovem-guardista Bobby Di Carlo, a bossanovista Claudette Soares, entre tantos outros. Alguns dos vinis desses artistas pela Rozenblit, por sinal, estão sendo editados agora em CD pelo selo paulistano InterCD. Crises diversas e inundações nos depósitos de discos ao longo dos anos 70 acabaram por falir a gravadora, que fechou as portas em 1986. O arquivo de fonogramas de frevo passou para a Polydisc, que fez os relançamentos em CD.

Além de uma rica cena de bossa nova (que revelou Geraldo Azevedo e Naná Vasconcelos), a cidade, como revela José Teles, ainda teve o seu movimento tropicalista, deflagrado quase que simultaneamente ao dos baianos e por eles apoiado. Com muita agitação roqueira, ele contava com um programa na TV (Convocação Geral), uma banda de destaque (o inusitado Laboratório de Sons Estranhos, de Aristides Guimarães) e revelou alguns músicos que mais tarde seriam famosos, como o produtor Arto Lindsay (que tocava em Recife na banda Contribution e depois mudou-se para os Estados Unidos, onde ajudou a formar a cena no wave da Nova York do começo dos anos 80) e o então menino prodígio da guitarra Robertinho do Recife (cuja louca e pouco conhecida história está contada em capítulo à parte).

Woodstock nordestino
Outra passagem obscura da história musical de Recife desvelada pelo livro é a das bandas de rock dos anos 70. "Foi a fase underground mais louca do Brasil. Os militantes de esquerda estavam presos e havia muito ácido, muitos shows malucos. Houve em Recife um Woodstock nordestino que não teve o menor reflexo fora", conta Teles. Mesmo visto como subversivo pelo conservadorismo político, o rock floresceu no trabalho de bandas como a lendária Ave Sangria, que chegou a gravar um precário disco no Rio de Janeiro, pela Continental (que Charles Gavin promete lançar ano que vem em sua série Dois Momentos). "Ao vivo, o Ave era muito zoada, bem Led Zeppelin", conta Teles. "No disco, ficou uma diluição de Quinteto Violado." A banda acabou dando o ingrediente roqueiro para o som de Alceu Valença nos 70 - ele levaria consigo para o Sudeste boa parte dos seus músicos. O paraibano Zé Ramalho, que também tocava com Alceu nessa época, foi outro dos que participaram daquela cena underground de Recife. Com Lula Côrtes, gravou em 1975, pela Rozenblit, o alucinado LP Paêbiru ouvir 30s("Não era um grande disco, mas foi uma viagem f.d.p.", analisa o jornalista). Boa parte da prensagem desse disco foi destruída numa das inundações do depósito da gravadora - o que só fez reforçar sua aura cult.

Aos poucos, sem repercussão dentro ou fora de Recife, o movimento rock iniciado nos anos 70 foi perdendo força - Lenine, que estreou com o grupo Flor do Cactus, foi uma de suas últimas crias. Os anos 80 foram a década perdida, mas algumas bandas, principalmente de heavy metal e punk rock, resistiram na cidade. Nessa cena, onde as informações (discos, livros, vídeos) aos poucos começavam a circular com mais facilidade, é que surgiriam as bandas fundadoras do mangue beat, Chico Science e Nação Zumbi e mundo livre s/a. "Foi a primeira geração de rock dos anos 90 ligada no computador. E era uma turma inteligente, que lia muito", conta José Teles. Com sua idéia de fundir o funk (que ouvia nos bailes da infância) com o maracatu e cirandas dos pais, Chico acabou sendo o artífice para a formatação, junto com a Nação, do inovador som do mangue. "É uma coisa que não tem nada a ver com o tropicalismo", defende o jornalista. "Os baianos faziam uma superposição de sons, uma colcha de retalhos. O mangue beat é uma nova música".

Com a repercussão obtida nacional e internacionalmente a partir de 1996 (em excursões pela Europa e um lendário show no Central Park, em Nova York), Chico, Nação e o mangue recolocaram Recife no mapa da música brasileira - isso, apesar de suas músicas tocarem pouco nas rádios. "Toda semana chega um americano a Recife para fazer tese sobre o mangue. Eles estão vindo até para aprender a tocar. Chico virou mito, é o nosso Bob Marley. Ele era cerebral, mas popular", define Teles. Graças ao mangue (e, em especial, à propaganda de Chico), artistas da música tradicional de Pernambuco, como Lia de Itamaracá, Selma do Coco e Mestre Salustiano tiveram nos últimos anos a oportunidade de gravar discos. "O Ariano Suassuna (defensor ferrenho da tradição musical de Pernambuco) passou o tempo todo falando desse povo, mas ele só apareceu com o mangue beat", conta Teles.

Hoje, com artistas consagrados (o ex-mundo livre Otto é hoje um darling da nova música brasileira) e festivais de renome (Abril Pro Rock e Rec Beat), a cidade já está, segundo o jornalista, em sua quarta geração de bandas do mangue. Nos últimos meses, surgiu até um anárquico movimento, o Molusco Lama, do grupo Limpeza Pajé, que gravou intervenções por cima de um show do francês Manu Chao em Recife e lançou o resultado no disco Bom Negócio.