Uma ponte que levou o samba do morro ao asfalto

Atento ao que acontecia, Noel Rosa ajudou a revelar compositores como Ismael Silva e Cartola e fez a crônica do Rio de Janeiro como poucos

Nana Vaz de Castro
11/12/2000
Noel Rosa contribuiu e muito na legitimação do samba de morro no mundo dos brancos, do rádio, da mídia. Como uma antena captando sinais de novidades e com grande sensibilidade para detectar onde estava o bom samba, ele saía de Vila Isabel, bairro de classe média, em direção aos morros e periferias, onde fez amizade e sambas com Ismael Silva, Cartola, Kid Pepe, Donga, Zé Pretinho, Heitor dos Prazeres, muitos deles gravados pelas estrelas Francisco Alves e Mario Reis. Não obstante, Noel teve entre seus parceiros figuras que já integravam o meio artístico da época: Sílvio Caldas, Nássara, João de Barro, Almirante, Orestes Barbosa, Lamartine Babo, Ary Barroso, José Maria de Abreu, Custódio Mesquita e o pianista Vadico, um de seus parceiros mais célebres, com quem compôs dez músicas, entre elas Conversa de Botequim, Feitio de Oração, Pra que Mentir?, Feitiço da Vila.

A faceta de cronista é outro ponto a destacar em sua produção. Os sambas de sua autoria são verdadeiras crônicas da época, muitas vezes baseadas nos fatos mais corriqueiros. Se a reforma ortográfica de 1931 suprimiu do alfabeto brasileiro o Y, Noel fez um samba a respeito, Picilone (Yvone) ("Já reparei outro dia/ Que o teu nome, ó Yvone/ Na nova ortografia/ Já perdeu o picilone").

Se o governo baixou um decreto adiantando a hora brasileira em 60 minutos, causando grande confusão, Noel fez não um, mas dois sambas: O Pulo da Hora (Que Horas São?) e Por Causa da Hora ("Eu que sempre dormi durante o dia/ Ganhei mais uma hora pra descanso/ Agradeço ao avanço/ De uma hora no ponteiro/ Viva o dia brasileiro!"). Se os filmes franceses e americanos estavam causando uma avalanche de estrangeirismos na língua falada no Brasil, vem Não Tem Tradução ("Amor lá no morro é amor pra chuchu/ As rimas do samba não são ‘I love you’/ E esse negócio de ‘alô’, ‘alô, boy’, ‘alô Johnny’/ Só pode ser conversa de telefone").

Atualidade constrangedora
A crise econômica de 1929 e suas conseqüências sociais também forneceram matéria-prima para o jovem compositor. Surgem nos sambas figuras como o "guarda civil - que o salário ainda não viu" (O Orvalho Vem Caindo) ou o Seu Jacinto, do samba homônimo (em parceria com Ismael), que, por causa da fome "aperta o cinto/ bota as calças no lugar". Ou ainda "De que maneira/ Eu vou me arranjar/ Pro senhorio não me despejar?/ Pois eu hoje saí do plantão/ sem tostão, sem tostão" (Sem Tostão, com Arthur Costa). Outras letras apresentam hoje uma atualidade constrangedora, como Onde Está a Honestidade? ("O seu dinheiro nasce de repente/ E embora não se saiba se é verdade/ Você acha nas ruas diariamente/ Anéis, dinheiro e até felicidade") ou Filosofia ("Nessa podridão sem fim/ Vou fingindo que sou rico/ Pra ninguém zombar de mim").

Em fins de 1934, a tuberculose passa a ser um fantasma na vida de Noel. Ele é obrigado a deixar o Rio, passando uma temporada na casa dos tios em Belo Horizonte, onde o ar é mais saudável para os pulmões. Longe de descansar, trata de travar amizade com a boemia local. De volta ao Rio em 35, tem que conciliar o choque causado com o suicídio do pai a uma agenda lotada de shows e programas de rádio. É nessa época que compõe clássicos como Conversa de Botequim e trava a famosa polêmica com o compositor Wilson Batista, resultando em sambas como Lenço no Pescoço, Rapaz Folgado, Mocinho da Vila, Conversa Fiada, Palpite Infeliz e Frankestein da Vila. Os anos seguintes (1936 e 37) foram de produção menos intensa para Noel, a doença se fazendo sentir, Lindaura perdendo o filho que esperava, Ceci namorando Mário Lago. Dessa época destacam-se suas gravações ao lado de Marília Baptista e suas últimas obras, a lírica Último Desejo e a marcha-rancho As Pastorinhas (com João de Barro).

Anti-romântico e amado
Segundo seus biógrafos João Máximo e Carlos Didier, autores do valioso e completíssimo relato Noel Rosa: Uma Biografia, Noel era um anti-romântico por excelência. Era assim porque sua visão da vida e do amor não era romântica nem idealizada, por não acreditar que ele também pudesse ser amado. E no entanto foi, ainda em vida. Participava de vários programas de rádio, atuando e cantando, apresentava-se com freqüências em shows, revistas e festas, escreveu revistas radiofônicas (O Barbeiro de Niterói, parodiando O Barbeiro de Sevilha, e Ladrão de Galinha) e até uma opereta (A Noiva do Condutor, com Arnold Glückmann). Noel, com seu humor e espírito, era popular, em sua própria voz e na dos outros intérpretes, tantos foram os que registraram a sua obra.

Apesar de Francisco Alves, Mário Reis, Sílvio Caldas, as maiores interpretações de sambas de Noel foram feitas por duas mulheres: Aracy de Almeida e Marília Baptista. A primeira, boêmia como Noel, companheira de sinuca na Lapa. A segunda, moça fina e educada, compositora, violonista e cantora de talento, que fazia duetos muito populares ao lado de Noel. Aracy foi também a grande responsável pela redescoberta da obra de Noel na década de 50, quando lançou dois discos com sua obra. Nos anos que seguiram sua morte, o compositor da Vila ficou praticamente esquecido. Depois da iniciativa de Aracy, entrou para a história da MPB para nunca mais sair

Noel na rede
Noel Rosa parece ser hoje um nome definitivamente ligado à música. Quer pesquisar na Internet achará o domínio www.noelrosa.com, que pertence... a um guitarrista norte-americano que assina Noël Rosa, com trema no "e", exatamente como fazia o Poeta da Vila. Também nos Estados Unidos encontramos o site da dupla Noel & Rosa, que faz música religiosa e tem um CD à venda.

Nosso Noel (de Medeiros) Rosa também ganhou um site próprio na comemoração dos seus 90 anos. O endereço é www.uol.com.br/noelrosa

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