Violência em vídeo de rap choca telespectadores

No clipe de Isso Aqui É uma Guerra, exibido pela MTV no último fim de semana, os rappers do Facção Central encenam seqüestro e fuzilamento

Tom Cardoso
13/06/2000
Domingo, hora do almoço. KL Jay, DJ dos Racionais e apresentador do YO! Rap MTV, anuncia mais um videoclipe de sua programação – Isso Aqui É uma Guerra, do grupo paulistano Facção Central. Nos próximos minutos o que se vê são cenas de violências de deixar o mais radical dos rappers de cabelo em pé. Rappers invadem uma casa de classe média, seqüestram a família e terminam metendo uma bala na cabeça da mãe. Por uma dessas macabras coincidências, o país entraria em estado de choque no dia seguinte, quando um bandido seqüestrou um ônibus no Rio de Janeiro, gritando "Isto aqui não é um filme". A ação acabaria com a sua morte e a de um refém.

No embalo dos versos da música – "Se eu quero roupa, comida, alguém tem de sangrar/ Vou enquadrar uma burguesa"(...) "Não chora vadia, que eu não tenho dó/ Dá a bolsa na moral/ Não resiste ao B.O" – o videoclipe acaba com o triunfo do bandido. "Ajude o nosso povo, ou veja sua mulher agonizando até morrer/ Porque alguém precisava comer/ Isso aqui é uma guerra", encerra o discurso o vocalista Eduardo, também autor da letra.

No mesmo dia, a direção do programa recebeu dezenas de e-mails e faxs reclamando das cenas de violência do videoclipe, que chegou a mostrar presos sendo libertados da cadeia. "Não acho que a música incentiva a violência, apenas mostramos as conseqüências da miséria social. Quem ouvir um verso ou outro pode até achar a música violenta demais, mas no geral o nosso discurso é de paz", afirma Eduardo, que já tem três discos gravados com o Facção Central, o último (Versos Sangrentos, que traz Isso Aqui É uma Guerra), lançado recentemente.

Pobreza choca mais
O grupo conta com o apoio de KL Jay, que promete não tirar o videoclipe do ar, mesmo com as pressões da emissora. Fã assumido da banda, O DJ diz que o clipe é um dos melhores do gênero e a música apenas reflete a frenética violência da periferia paulistana. "Não fiquei chocado com o clipe. Fico mais chocado quando vejo uma criança descalça pedindo dinheiro para um playboy dentro de um BMW".

Para o rapper carioca Big Richard, que há seis anos mora em São Paulo, nada justifica as cenas mostradas. "Violência por violência é uma coisa besta. O clipe até que é bem feito, bem produzido, mas ideologicamente é um lixo", afirma. Integrante do 509-E, grupo formado dentro da Casa de Detenção, em São Paulo, Dexter tem a mesma opinião. "Aqui no Carandiru muita gente gostou, elogiou algumas cenas, que foram muito bem feitas. Mas a gente percebe que a apologia ao crime não é o caminho certo, faltou um pouco de inteligência ao autor da letra".

Para que cada um tire suas conclusões, eis a íntegra da letra de Isso Aqui É uma Guerra:
É uma guerra onde só sobrevive quem atira
Quem enquadra a mansão, quem trafica
Infelizmente o livro não resolve
O Brasil só me respeita com o revólver

O juiz ajoelha, o executivo chora
Para não sentir o calibre da pistola
Se eu quero roupa, comida, alguém tem de sangrar
Vou enquadrar uma burguesa

E atirar pra matar
Vou furar seus bens
E ficar bem louco
Seqüestrar alguém no caixa eletrônico

A minha quinta série só adianta
Se eu tiver um refém com o meu cano na garganta
Ai não tem gambé para negociar
Vai se ferrar, é hora de me vingar
A fome virou ódio e alguém tem de chorar

Não queria cela
Nem o seu dinheiro
Nem boy torturado no cativeiro
Não queria um futuro com conforto
Pela corrente no pescoço

Mais 357, é o que o Brasil me dá
Sem emprego, dinheiro
Quando o prego e Audi passar
Aperta o entra, cuzão, e digita

Esvazia a conta
Agiliza e não grita
Não tem Deus, nem milagre
Esquece o crucifixo
É só uma vadia chorando pelo marido

É o cofre versus a escola sem professor
Se for para ser mendigo, doutor
Eu prefiro uma Glock com silenciador
Comer o seu lixo não é comigo, morô?

Desce do carro senão tá morto
Essa é a lei daqui
A lei do demônio
Isso aqui não é uma guerra

Não chora vadia
Que eu não tenho dó
Dá a bolsa na moral
Não resiste ao B.O

Aqui é outro brasileiro
Transformado em monstro
Semi-analfabeto, armado e perigoso
Querendo sua corrente de ouro

Atacando seu pulso
Atacando seu bolso
Pronto para atirar
E pronto para matar

Vai se f...
Descarregue essa PT
Mata o filho do boy
Como o Brasil quer ver

Esfrega na cara
A panela vazia
E exige os seus direitos
Com sangue da vadia

É a lei da natureza
Quem tem fome, mata
Na selva é o animal
Na rua é a empresária

Inconseqüente, insano, doente
O Brasil me estimula
A atirar no gerente
Aqui não é novela
Não tem amor na tela
A cena é triste
É solidão na cela

Nem polícia pega boi
Deita escrivão
Abre a cela carcereiro
Liberta o ladrão

Tem M10, dê alvará
Para liberdade
Seu oitão é uma piada
Gambé covarde
Cala a boca e aplaude o resgate
É, cala a boca e aplaude

Boy, quem te protege?
Do oitão na cabeça
Sua polícia no chão do DP?
Sem defesa, rezando para o ladrão ter pena, que pena
Seu herói pede socorro nesta cena

Quer ser filho indo para escola?
E não voltando morto?
Então meta a mão no cofre
E ajude o nosso povo

Ou veja sua mulher
Agonizando até morrer
Porque alguém precisava comer
Isso aqui é uma guerra