Zé Ramalho e seu Brasil muito eclético

Em seu novo trabalho, cantor revê grandes sucessos da MPB - e recria de Villa-Lobos a Lulu Santos

Marco Antonio Barbosa
12/05/2003
Zé Ramalho não se cansa de tentar acertar as contas com o passado. Com a sua própria trajetória, com os "ciclos" temáticos que impôs a sua produção fonográfica, e também com a história da música popular brasileira. "Mais do que uma questão musical, trata-se de um acerto de contas com a relação que tenho com o Brasil, com as coisas que foram acontecendo por aqui nos últimos 30 anos", diz o cantor e compositor paraibano sobre seu mais recente disco, Estação Brasil (BMG). O álbum, que chega às lojas no ano em que Zé comemora seus 25 anos de carreira - também festejados com o relançamento de boa parte de sua obra em CD - espelha uma visão bastante particular da evolução da MPB, através de uma eclética coleção de versões. Há de tudo um pouco, literalmente: de Villa-Lobos a Roberto & Erasmo, de Tom Jobim a Lulu Santos.

"Eu queria fazer um disco de intérprete há muito tempo, uma obra mais aberta, eclética", confirma Zé sobre a intenção declarada de Estação Brasil. Não por acaso, as fotos de divulgação do disco foram feitas na grandiosa estação ferroviária da Leopoldina (RJ), uma das mais antigas do país. "O título vem dessa viagem que quis fazer pela imensa variedade que há na música brasileira, as diferentes interpretações, os estilos, ritmos, os formatos musicais. Tudo isso me impressiona, acho incrível essa riqueza." O cantor tenta explicar como traçou sua jornada metafórica pela MPB, de dentro para fora. "Todas as músicas deste disco foram escolhidas com base no que elas representam para mim, nas marcas que elas imprimiram em minha memória, meu subconsciente. Vasculhei minha coleção de discos, pensei em como recriar cada música, procurei minha própria harmonia, meu jeito de enriquecer as interpretações", afirma.

E bota subconsciente diversificado nisso aí. Zé Ramalho percorre cerca de 40 anos da música popular brasileira, indo de suas raízes nordestinas (Asa Branca e Cantiga do Sapo, de Jackson do Pandeiro) ao BRock dos anos 80 (Bete Balanço, do Barão Vermelho, e Tempos Modernos, de Lulu Santos). "São as diferentes cores, as diferentes regiões sonoras do Brasil o que eu quero exaltar", narra Zé.

O ecletismo pode até assustar a quem fica apenas na relação do repertório. Afinal, como imaginar o trovador paraibano indo a extremos tão distintos quanto o Clube da Esquina (Caçador de Mim) e o pagode carioca (Malandragem Dá Um Tempo, escolhida para virar clipe), fazendo escalas na doçura erudita de Villa-Lobos (O Trenzinho do Caipira), no Jobim pós-bossa (Aguas de Março) e no romantismo desencanado de Erasmo Carlos (Mesmo que Seja Eu)? E a obviedade de grande parte do repertório, quase todo de canções muito populares, batidas até? "O que une todas essas músicas é o que elas dizem para mim, o que elas representam na minha busca pessoal de sentido na vida. O envolvimento pessoal é tudo", responde Zé. E prossegue: "O fato de as músicas serem muito conhecidas só aumentou o desafio de fazer deste disco um trabalho diferente, original. Foi difícil chegar até essa síntese, foi uma longa caminhada. Do momento em que comecei a escolher as canções até finalizar a gravação, foram quase dois anos e meio de trabalho."

É claro que o toque pessoal do cantor não se restringiria à mera escolha do repertório. As mutações radicais operadas em várias das canções do disco - produzido pelo velho parceiro Robertinho do Recife - ficam à altura da ousadia na seleção. Toques de forró e tambores de maracatu adornam Águas de Março; Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar), de Tim Maia, ganhou andamento semelhante ao de Frevo Mulher, do próprio Zé; o sambão de O que É, o que É desconstruiu-se em vocal e violoncelo solenes; Meu Bem Querer virou baião; Tempos Modernos chega com ares eletrônicos e Bete Balanço vira uma quase-balada quase-psicodélica. Não sobra quase nada parecido com o original, aqui.

Por falar em original, há uma única canção inédita no disco (duplo): a faixa de abertura, Nesse Brasil Cabôco de Mãe Preta e Pai João, que, na visão de Zé, sumariza sua análise da música brasileira retratada no CD. "Isso vem de uma coisa antiga, uma cantoria de viola que remete aos primórdios da nossa música. Representa a união da percussão trazida pelos escravos, com as influências do que já existia aqui - os instrumentos e cantos indígenas - e as inovações do português. Tudo visto pela tradição nordestina. Isso tudo somado é a música brasileira", explica o compositor. A canção é um das cinco de autoria do próprio Zé escolhidas para completar a viagem de Estação Brasil. As outras (Desejo de Mouro, Hino Amizade, Dança das Luzes e Mote das Amplidões) não são novas, mas também não chegam a ser muito conhecidas. "Hino Amizade só havia saído em compacto, em 1980", destaca Zé. "A letra fala de guerra, de apocalipse, acaba soando atual nesses tempos de conflito em que vivemos."

Fechando os vários significados que o novo trabalho tem para Zé Ramalho, Estação Brasil também é a parte final de uma trilogia iniciada em Antologia Acústica (1997) e continuada com Nação Nordestina (2000) - discos que, como, este, são duplos e primam por um caráter revisionista. "O Antologia era eu me revendo como compositor, olhando minha própria obra. O Nação trazia minha homenagem ao universo da música nordestina e me situava dentro desse universo. E esse novo trabalho termina tudo de forma ampla, olhando para o Brasil como um todo", conclui o compositor.