BARQUINHO

Maysa (1961)

1961
CBS
Crítica

Cotação:

Mais um atestado de que a bossa nova não nasceu pronta nem se fez em um dia (e nem mesmo um ano). Este disco da cantora Maysa Monjardim (ex- Matarazzo) (1936-1977) foi gravado em 1960, dois anos depois da decolagem oficial do movimento através do disco 78 rotações Chega de Saudade de João Gilberto. Mesmo assim, ele mistura elementos da cena anterior - atmosfera do samba canção de fossa, da qual Maysa foi um dos estandartes com os petardos de sua lavra Ouça e Meu Mundo Caiu - e antecipa modificações futuras como o aparecimento do revolucionário Tamba Trio, que estréia ainda embrionário. Seus integrantes, o pianista Luís Eça (autor de arranjos no CD), Bebeto (baixo e flauta) e Hélcio Milito (bateria) formam a base instrumental da gravação ao lado do violonista, guitarrista, arranjador e lider Roberto Menescal e do pianista Luis Carlos Vinhas. Na contracapa (corretamente reproduzida pela produção esmerada de Charles Gavin), Ronaldo Bôscoli, um dos propulsores do movimento os chama de "meninos da Nova Onda", numa prova de que o rótulo bossa nova ainda não tinha colado. O pequeno conjunto dialoga com grande orquestra de cordas (vide a fantasia de abertura de Dois Meninos, que cita cantigas de roda), emoldurando a voz quente, rouca e sombreada de Maysa, uma intérprete com excelente aparato técnico e desempenho de alta densidade emocional, injustamente arquivada pelas novas gerações.

Seu aparecimento provocou algum escândalo. Casada com um herdeiro da (então) miliardária familia ítalo-paulista Matarazzo, ela ingressou na carreira artística, então considerada uma atividade pouco nobre para tal sobrenome, levada pelo produtor Roberto Côrte Real (o descobridor de Roberto Carlos) na gravadora RGE. O estrondoso sucesso motivou outras socialites a tentarem o pódio sem o mesmo êxito, como Lígia (Jordan) Freitas Vale, Teresa Souza Campos e (já pós-bossa) Irene Singery. O então chamado café society onde circulava, era apenas circunstancial para Maysa, artista cuja obra não pede licença para situar-se entre o magnetismo de Elis Regina e a introversão de Elizeth Cardoso. No disco, ela brinca bem nas duas. Suinga e balança no ultraclássico O Barquinho, em Errinho à Toa (as duas da dupla Roberto Menescal/ Ronaldo Bôscoli), Recado à Solidão (Chico Feitosa), Você e Eu (Carlos Lyra/ Vinicius de Moraes) e na obscura Eu e o Meu Coração (Inaldo Vilarinho - grafado na ficha técnica Villarin - e Antonio Botelho), regravada por João Gilberto no disco João, de 1991. E destila transporte emocional em Melancolia e na biográfica Maysa (ambas da dupla Luis Eça/ Ronaldo Bôscoli), além de em Lágrima Primeira (Menescal/ Bôscoli), no bolero Só Você (mais nada) (Paulo Soledade) e numa pérola esquecida da dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Cala Meu Amor.

Na efervescência daqueles tempos, Maysa cantava uma abordagem nouvelle vague do ato sexual em Depois do Amor (Normando/ Ronaldo Bôscoli) e o que poderia ser uma ode homoerótica em Dois Meninos, que nenhum ativista GLS ainda pensou em regravar. No olho do furacão da transição, Maysa desfila sua grandeza. Acordem, retrovisores!

(Tárik de Souza)
Faixas
Ouvir todas em sequência
4 Recado à solidão Ouvir
(Chico Feitosa Feitosa)
5 Depois do amor Ouvir
(Normando, Ronaldo Bôscoli)
6 Só você (Mais nada) Ouvir
(Paulo Soledade)
8 Errinho à toa Ouvir
(Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli)
9 Lágrima primeira Ouvir
(Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli)
10 Eu e o meu coração Ouvir
(Antônio Botelho, Inaldo Villarin)
11 Cala meu amor Ouvir
(Tom Jobim, Vinicius de Moraes)
12 Melancolia Ouvir
(Luiz Eça, Ronaldo Bôscoli)
 
BARQUINHO