Samba-Canção

O marco inaugural deste samba ralentado, sentimental, com menos batuque, predomínio melódico e maior parentesco com a modinha e a seresta (e depois o bolero) é nítido: a composição Ai, Ioiô (Linda Flor) que leva três assinaturas, a do compositor Henrique Vogeler e dos letristas Marques Porto e Luiz Peixoto. A música tinha sido lançada em duas ocasiões anteriores com outras letras & letristas e os títulos de Linda Flor (gravada por Vicente Celestino) e Meiga Flor (por Francisco Alves). Mas só na última versão, reescrita por exigência da diva do teatro de revista Araci Cortes (que a gravaria com sucesso em 1929), ela faria enorme sucesso, contribuindo para a fixação do gênero.

Praticado por autores tão diversificados quanto Ary Barroso (que o tratava com desprezo apesar de ter composto duas obras-primas no ramo, Risque e Folha Morta) teria seu apogeu nas décadas de 40 e 50. Seu conteúdo melancólico (que mais tarde incorporaria a palavra fossa) serviria ao romantismo descabelado do sambolero (de expoentes como o avatar brega Adelino Moreira) como o Molambo (de Jaime Florence, o Meira, professor de violão de Baden Powell e Augusto Mesquita) cujo intérprete, Roberto Luna, literalmente descabelava-se ao cantar. Separado, o casal Herivelto Martins e Dalva de Oliveira trocou acusações através de sambas-canções doloridos na década de 40. O clima era tão pesado que a lenda diz que Vingança, do mestre da matéria Lupicínio Rodrigues, provocou suicídio na voz trágica de Linda Batista. Nelson Gonçalves angariou um milhão de ouvintes no incipiente mercado brasileiro de 1957 para a pungente história de A Volta do Boêmio.

Primórdios da bossa
Paradoxalmente, o mesmo estilo daria base para os altos vôos harmônicos da bossa nova, tendo sido utilizado nas primeiras composições de Tom Jobim como Incerteza, Faz uma Semana, Pensando em Você e Tereza da Praia. Precursores do movimento como os cantores Dick Farney (Marina, Copacabana), Doris Monteiro (Se Você Se Importasse), Nora Ney (Ninguém Me Ama, De Cigarro em Cigarro, Menino Grande) e compositores como Garoto (Duas Contas), Valzinho (Doce Veneno), Dolores Duran (Castigo, Fim de Caso, A Noite do Meu Bem, Por Causa de Você, esta em parceria com Tom Jobim) e Tito Madi (Não Diga Não, Cansei de Ilusões) adotaram o estilo como plataforma intimista para desvincular-se da eloqüência rítmica do samba tradicional.

Em declínio depois da reformulação estética da bossa nova, o samba-canção que também perdeu terreno para a balada, e ganhou ironias por seu sentimentalismo na regravação punk de Negue (Adelino Moreira/ Enzo de Almeida Passos) pelo grupo Camisa de Vênus, mantém seu vasto e rico acervo de obras em permanente processo de regravações.


Músicas

Ai, Ioiô (Henrique Vogeler/ Marques Porto/ Luis Peixoto) – Araci Cortes
Saia do Caminho (Custódio Mesquita/ Ewaldo Ruy) – Aracy de Almeida
Segredo (Herivelto Martins/ Marino Pinto) – Dalva de Oliveira
Nervos de Aço (Lupicínio Rodrigues) – Jamelão
Canção de Amor (Chocolate/ Elano de Paula) – Elizeth Cardoso
Folha Morta (Ary Barroso) – Jamelão
Duas Contas (Garoto) – Sérgio Ricardo
Não Diga Não (Tito Madi) – Tito Madi
Marina (Dorival Caymmi) – Dick Farney
Ninguém Me Ama (Antonio Maria/ Fernando Lobo) – Nora Ney
Se Você Se Importasse (Fernando Cesar) – Doris Monteiro
Molambo (Jaime Florence/ Augusto Mesquita) – Roberto Luna
Doce Veneno (Valzinho) – Zezé Gonzaga
Vingança (Lupicínio Rodrigues) – Linda Batista
Conceição (Dunga/ Jair Amorim) – Cauby Peixoto
Ouça (Maysa) – Maysa
Bom Dia, Tristeza (Adoniran Barbosa/ Vinicius de Moraes) – Isaura Garcia
Se Alguém Telefonar (Alcyr Pires Vermelho/ Jair Amorim) – Lana Bittencourt
A Noite do Meu Bem (Dolores Duran) – Dolores Duran
A Volta do Boêmio (Adelino Moreira) – Nelson Gonçalves
Chuvas de Verão (Fernando Lobo) – Caetano Veloso
Ronda (Paulo Vanzolini) – Maria Bethânia
Me Deixa em Paz (Monsueto Menezes) – Milton Nascimento e Alaíde Costa
Matriz ou Filial (Lucio Cardim) – Simone

Tárik de Souza